sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

“A economia dos Estados Unidos é insustentável”

Com uma crescente onda de demissões nas empresas mais importantes do planeta como pano de fundo, os integrantes do G-20 elaboraram um plano de ação para superar a derrocada global. Mesmo que criticada por empenhar-se em evitar decisões concretas, a declaração emitida na semana passada aponta no sentido de limitar os efeitos de recessão das economias centrais e emergentes mediante uma reforma do sistema financeiro mundial - em termos de regulação e transparência -, um forte estímulo das economias nacionais com políticas fiscais e monetárias, e uma maior participação dos países emergentes na tomada de decisões políticas.

Neste contexto, Cash [suplemento do jornal Pagina 12] dialogou com o economista marxista Gérard Dumenil durante a sua visita a Buenos Aires, onde participou do IV Colóquio do Sepla. O pesquisador do Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS), que há anos vem chamando a atenção sobre a “iminência” da atual crise, opinou que suas causas centrais são os desequilíbrios da trajetória econômica dos Estados Unidos, a aceleração de mecanismos financeiros baseados num endividamento “insustentável” e o “financiamento dos desequilíbrios da maior potência por parte do resto do mundo”.

Segue a entrevista concedida a Natalia Aruguete e publicada no jornal argentino Página 12. A tradução é do Cepat.

Cash - Há anos vocês vêm apresentando a possibilidade de uma grande crise financeira. Vê diferenças entre o que pensava que poderia acontecer e a forma como finalmente deslanchou?

Gérard Dumenil - Na crise atual há dois aspectos. O primeiro é a situação econômica dos Estados Unidos. Este aspecto previa há alguns anos. O crescimento desse país se caracteriza por um déficit crescente do comércio exterior: compra mais do que o mundo e do que vende ao resto do mundo. Como conseqüência, o mundo financia cada ano mais a economia norte-americana.

Cash - Como a financia?

GD - Com investimentos financeiros. Compra bônus do Tesouro e ações. Já em 2006 víamos que essa trajetória era insustentável, mas agora é muito mais. Ao desequilíbrio exterior se agregam os desequilíbrios internos, em particular, o crescimento da dívida habitacional.

Cash - Qual é o segundo aspecto da atual crise?

GD - A inovação financeira. É o mais evidente. Entre 2001 e 2006 se aceleraram novos mecanismos financeiros, em particular os créditos subprime - o que significou o empréstimo de dinheiro a pessoas que não podem pagá-los -, com mecanismos de titularização. Por trás dos subprime há seguradoras. Se o tomador de crédito não pagar, outra empresa pagará em seu lugar. É um sistema. Mas, há outros mecanismos complexos: o que os mercados fazem.

Cash - A que se refere com “o que os mercados fazem”?

GD - Ao fato de comprar ações a um determinado prazo ou vender proteção. Por exemplo, uma empresa vai utilizar cobre numa nova fábrica. Seus proprietários fazem o investimento. Sabem que nos próximos dez anos vão necessitar do insumo e que o preço do cobre é muito importante para eles. Vão falar com um fundo de cobertura cujo trabalho é vender cobre a um determinado preço em um, dois ou dez anos. Esta contratação significa proteção, já que esta empresa terá o cobre a esse preço quando talvez no mercado seja mais caro ou mais barato. É um mecanismo especulativo onde se trabalho com uma enorme incerteza. Mas os mercados representam uma infinidade de outros mecanismos.

Cash - Por exemplo?

GD - Há taxas de juros a curto e longo prazos, mas os níveis são diferentes. Por exemplo, no Brasil a taxa de juro é muito elevada. Os bancos pedem emprestado num país com taxa de juro baixa e emprestam em um país com taxa de juro elevada. O risco é cambial, porque a taxa de câmbio do real pode baixar e ter perdas de 30% do valor do investimento. É muito difícil controlar estes mecanismos financeiros e saber exatamente o que acontece. Não há sistema de controle, nem acompanhamento estatístico que possa informar o que irá acontecer. Mas esta é a base do atual sistema financeiro.

Cash - Entre estes mecanismos, que papel exerceu a “inovação financeira” nesta crise?

GD - O caráter insustentável da trajetória da economia dos Estados Unidos tinha que aparecer de certa maneira e isso aconteceu através de uma crise financeira, porque utilizaram o boom imobiliário para prolongar o crescimento econômico durante 4 ou 5 anos. A recessão de 2001 foi o ensaio geral da atual. Foi muito difícil para os norte-americanos sair dessa situação, que significou contração da atividade e crise das Bolsas.

Cash - E como conseguiram sair?

GD - Através da enorme queda da taxa de juro do Federal Reserve (FED) e da nova onda de investimentos na área de habitação através da titularização. Mas essa maneira de prolongar a sua trajetória positiva da economia também se tornou insustentável porque é impossível basear o crescimento de um país sobre o endividamento de casas que não podem pagar. Com uma particularidade: em 2006, mais da metade dos créditos “podres” foram vendidos ao resto do mundo. Alan Greenspan, quando era presidente do FED, dizia: “A titularização está muito bem porque dilui o risco. Os bancos não conservam os créditos podres, vendem-nos. Em particular exportam o risco ao Japão, à Europa”. Assim exportaram a sua crise.

Cash - O consumo das famílias é uma parte significativa dos ingressos dos Estados Unidos. Acredita que poderiam ter ensaiado políticas que apontariam este setor para sair desta crise?

GD - O problema não é de falta de demanda. Entre 2001 e 2007, o problema foi de excesso de demanda. No conjunto, os lares desse país gastam de forma desenfreada, ainda que seja um esquema heterogêneo, já que o poder de compra de 95% da população está estancado desde os anos 1970. Mas, considerando o conjunto das famílias, consomem mais do que ganham. Assim, a sua taxa de poupança é negativa.

Cash - Calcula-se que o custo da crise até outubro foi de aproximadamente 4,5 bilhões de dólares, contando Estados Unidos, Europa, Japão e Canadá. É possível estimar qual será o montante desta crise?

GD - É difícil de calcular. Quando falamos do “custo”, falamos de fatores heterogêneos: emprestar dinheiro não é a mesma coisa que comprar uma empresa que se nacionaliza ou comprar uma dívida podre. Nacionalizar significa que o Tesouro pode comprar as ações de um banco a um valor baixo. É difícil saber quanto custará a solvência do sistema porque com os créditos se pode comprar, mas também inclui a modalidade do Plano Paulson (secretário do Tesouro) que era comprar os “créditos podres” dos bancos.

Cash - Aproximadamente 10 milhões de famílias perderão suas casas. O que iria acontecer caso tomassem medidas de ajuda a essas pessoas em vez de salvar os bancos?

GD - Essa decisão deveria ter sido tomada mais cedo. Agora estamos numa situação de extrema urgência. Evitar uma crise como a do subprime era muito simples. Necessitava-se de uma decisão da Casa Branca, mas não o fez. Na França, o subprime não seria possível. Uma pessoa não pode pedir um crédito pelo qual tenha que pagar mais de 30% de seu ingresso mensal. Nos Estados Unidos, uma família paga até 80% de seu ingresso para reembolsar e pagar os juros.

Cash - Por que acredita que não se tomou essa decisão?

GD - Porque assim ganharam um dinheiro incrível entre 2001 e 2006. A taxa de lucros dos bancos nesse período disparou completamente. A outra razão é que necessitavam desse aumento dos créditos da habitação para sair da crise de 2001. Greenspan ficou muito preocupado ao ver o aumento da taxa de juro do FED, mas as taxas dos créditos hipotecários não subiram. Era a primeira vez que isto acontecia. A explicação de Greenspan foi: “Eu aumento o custo do crédito aos bancos e estes não o repassam”. Porque podem pedir dinheiro emprestado ao resto do mundo e o resto do mundo está disponível para emprestar com uma taxa de juro menos elevada. E Greenspan descobriu que não podia controlar a taxa de juro dos créditos hipotecários.

Cash - Há certa preocupação com a possibilidade de que esta crise derive em protecionismo comercial. Acredita que alguns países irão recorrer a políticas deste tipo?

GD - Depois desta crise, os Estados Unidos necessitam corrigir sua trajetória econômica. Isso significa sair de muitos aspectos do neoliberalismo. O protecionismo é uma questão, mas o problema é que o poder econômico norte-americano se baseia em suas empresas transacionais, que necessitam do livre comércio, da livre mobilidade do capital, ao passo que a trajetória da economia é incompatível com a livre mobilidade do capital.

Cash - E como resolvem essa incompatibilidade?

GD - Enganando. Por exemplo, o Exército norte-americano decide comprar aviões europeus, o governo diz que não. Ou se antes da crise a China queria comprar uma empresa de petróleo, o governo dizia: “Não. Segurança nacional”. Tudo isto antes da crise. Agora é diferente porque estão numa situação terrível e são mais flexíveis.

Cash - Fala-se da importante dívida externa dos Estados Unidos. No entanto, você disse que não se trata exatamente de uma dívida. Por quê?

GD - Não é uma dívida. A expressão correta é que o resto do mundo financia a economia norte-americana. Financiar significa ter ações, bônus do Tesouro. Esses títulos são uma dívida. Mas uma ação não é uma dívida. Mesmo que isto não muda o fato de que o resto do mundo tem um comportamento mais ou menos rentista.

Cash - Em que sentido?

GD - Por exemplo, um banco central como o da China comprava bônus do Tesouro a uma taxa de juro de 5% ao ano. Mas, quando os Estados Unidos fazem inversões diretas em outros países conseguem taxas de rendimento de 15% ou 20%. O resto do mundo financiava a economia norte-americana de forma bastante barata em termos comparativos. Mas agora estamos entrando numa nova fase porque o resto do mundo quer entrar no coração do animal e também se beneficiar de rendimentos elevados. A China, por exemplo, vai usar seus dólares para fazer inversões ativas, não rentistas, entrando nas grandes entidades norte-americanas e com o mesmo tipo de rendimento no mundo. Isso é uma situação nova.

Cash - Diz-se que a China financiará a crise de Wall Street pela quantidade de bônus do Tesouro que possui. Você acredita que a China pode desbancar os Estados Unidos de seu papel de maior potência mundial?

GD - Não estamos nessa situação, de forma alguma. A China desempenha um papel muito importante agora porque tem enormes reservas de divisas (dólares e euros) por seu superávit comercial, que não é outra coisa que o déficit comercial norte-americano.

Cash - O problema é que muitos países emergentes têm problemas de divisas. Quem poderia ajudá-los?

GD - O Fundo Monetário Internacional, mas seus recursos são muito limitados. Diz-se que a China deve emprestar dinheiro ao Fundo. A China responde: “Estamos de acordo, mas necessitamos de um novo sistema financeiro internacional”, no qual outras moedas, não apenas o dólar, exerçam um papel importante.

Cash - Antes desta crise você afirmou que a América Latina era a oportunidade para a mudança. Continua a pensar assim?

GD - Sim, porque provavelmente depois da crise tenhamos um processo de diferenciação em escala mundial. O mundo não é uniforme. Os Estados Unidos vão se recuperar de alguma maneira, a Europa talvez de outra e a China de maneira completamente diferente. A América Latina foi historicamente uma região de resistência e escolheu governos de esquerda. O problema é o que acontece com governos de esquerda. Por exemplo, o caso do Brasil.

Cash - Por que alude ao caso do Brasil?

GD - Porque a política do Brasil é 100% neoliberal. O caso da Argentina é particular porque, depois de uma década de loucura neoliberal, teve esta crise terrível de 2001 e saiu de forma bastante hábil. Na França, uma pessoa de esquerda bastante radical considera que os três países andinos - Venezuela, Equador e Bolívia - representam uma esperança, porque escolheram governos de esquerda que pensam na formação de um bloco. Provavelmente, o caso mais simples é o do Equador, porque é um governo muito sério com uma vontade nacional de recuperação dos recursos do país, de alcançar uma mudança social. E tem, de certa maneira, um grau de harmonia social.

Cash - E o caso da Bolívia?

GD - É muito difícil. Muita gente na França pensa que a Bolívia está construindo o socialismo. Há um governo comprometido com uma mudança social, em recuperar seus recursos, desenvolver o país, ainda que com uma alta tensão social. E na Venezuela, o povo basicamente apóia Chávez, mas também há uma burguesia com uma relação muito difícil com o governo.

Cash - Isso dificulta a mudança?

GD - É um país com uma burocracia muito grande. O próprio Chávez tem muitas dificuldades para controlar essa burocracia.

Cash - A situação na região hoje é mais complexa do que há dois anos?

GD - Exatamente. E a Argentina estava em situação de sair da crise e o fez de forma formidável. Não sair do neoliberalismo, mas acabar realmente com esta variedade louca do neoliberalismo. Para mim, a América Latina segue representando uma esperança. É um continente de tradição de luta.

(IHU On-Line)

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