by Israel do Vale*
A passagem de Mano Brown pela televisão, na última segunda- feira, causou estranheza e decepção. E gerou, como reação, um bom arrazoado de bobagens na imprensa vigilante dos interesses de certa classe média/medíocre.Não tenho procuração para defender Brown. E nem intenção disso. Mas cobrar dele o que não é me parece estúpido de saída. Foi assim que reagiram, na média, colunistas e repórteres da mídia "bula de remédio", esta que se presta a mastigar idéias pré-moldadas para que o consumidor de frases de efeito "não raro, preconceituosas" possa digerilas com tranqüilidade, no conforto do seu lar. É do que vivem as revistas semanais, sobretudo. Atacar Brown é fácil. Entrevistálo, não. Mais difícil ainda é dar-lhe o direito de ser contraditório - coisa que ele próprio admite. E entender a complexidade do que ele representa. Os convidados do "Roda Viva" sentiram isso na pele. É preciso reconhecer o mérito da TV Cultura em colocar Mano Brown por duas horas na televisão. Brown é arredio. Avesso à imprensa, deixouse entrevistar raríssimas vezes nas quase duas décadas à frente do mais influente "e contundente" grupo de rap do país, os Racionais MCs. O pecado original, no rol de boas intenções do programa, foi a composição equivocada da banca de entrevistadores.Mais do que um fenômeno musical [apropriado pela indústria, assimilado pelo comércio], o rap é um fenômeno social. Se fez sozinho, do nada, numa extensa rede [subterrânea] de relacionamento, uma espécie de "Internet a carvão", pré-tecnológica, que se expandiu no corpo a corpo, por sinais de fumaça.O elenco de entrevistadores "de grife" girou em falso [intimidado? reverente?] e extraiu pouco de proveitoso do rapper. Pé atrás como de hábito, Brown agiu como um lutador de boxe que fica na defensiva, esperando o bote para desviar-se dele e responder com um cruzado. Mas o bote simplesmente não veio. Não veio pela absoluta falta de intimidade dos entrevistadores com o tema e com o que ele significa, do ponto de vista artístico e social. E pela dificuldade de compreensão de uma lógica particular [e longínqua], que independe do reconhecimentopadrão [da mídia, do mercado formal, do suposto formador de opinião]. O que Brown mostra é que a periferia cansou de esperar. De esperar o ônibus, o hospital, o esgoto encanado, o direito de dizer por si própria quem ela é - para além das estatísticas e dos pré-conceitos. Cansou de esperar e resolveu encontrar saídas próprias, erigindo uma espécie de "second life" da sobrevivência e da ética, de vísceras expostas, para além das convenções morais, sociais e até mesmo da letra da lei. Brown precisa ser desvendado pelo que não disse. Desconfortável, expôs suas limitações como orador - e decepcionou aqueles que sempre tentaram tatuar nele a imagem de messias. Brown não quer comandar nada. Não quer conclamar a nada. Não quer ser líder da periferia. Se é influente [e isso, sim, ele é!] é porque fala de igual para igual para seus pares. E não se trata de oratória, mas de legitimidade.Mano Brown é, em minha modesta opinião, um dos maiores compositores da música popular brasileira de todos os tempos. Um artista pleno, senhor do seu tempo. Está para a periferia como Chico Buarque e Caetano Veloso estão para a classe média. Basta se debruçar com calma sobre qualquer das suas letras [quase palpáveis de tão visuais] para decifrar sua capacidade narrativa, de superpor dois níveis paralelos de elaboração, do descrito e do imaginado.Uma letra dos Racionais diz mais sobre este país que a maior parte da produção acadêmica de fundo social- sociológico, antropológico. E é assim porque diz de dentro, com a crueza "e a poesia embrutecida" que só quem vive é capaz de forjar. Brown é inteligentíssimo, para além da capacidade de elaboração do raciocínio em linha reta que se possa cobrar dele. Fala sinuosamente sim, de maneira entrecortada, em espiral. É fruto de uma formação truncada, do aprendizado das ruas, da leitura esparsa de referências como Malcolm X, a partir de uma biografia que lhe foi entregue por um cara essencial no rap nacional chamado Milton Salles "o [homem por trás da banda", sempre incógnito, que batizou o grupo e pegou Brown pela mão - a quem conheci nos idos de editor deste caderno, por uma ligação espontânea dele para a redação, entusiasmado pela descoberta da seção Blequitude, dez anos atrás].Mano Brown tem plena consciência do que é estar na mídia. E sempre desdenhou dela. Estive com ele uma boa dúzia de vezes, quase sempre nos camarins do grupo. Desconfiado, embora cordial, nunca se deixou entrevistar. Só se soltava na conversa quando o assunto derivava da música - especialmente para o futebol [santista roxo que é]. Supor que empunharia bandeiras e oficializaria a candidatura a mártir que tantas vezes lhe ofereceram é realmente subestimá-lo. Cobrar uma atitude legalista, politicamente correta, de quem vive no universo paralelo, à margem das contrapartidas sociais mais básicas, é inverter o ônus da culpa. O abismo entre entrevistadores e Mano Brown é sintomático de certo estado de estranhamento. É preciso vencer o apartheid [de relacionamento] social. Estabelecer laços. Criar cumplicidades. Ou a panela de pressão que arde em fogo brando [e dá origem a episódios como o do ataque do PCC, uma "surpresa" que é fruto da absoluta falta de entendimento e interlocução com este segmento da população] se sedimentará em vulcão. E quem controla a fúria do vulcão?
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