sexta-feira, 23 de maio de 2008

A nova geopolítica da energia

Por Michael T. Klare, para Carta Maior
Os estrategistas militares norte-americanos estão se preparando para as futuras guerras que certamente serão empreendidas, não por questões de ideologia ou política, mas em luta por recursos crescentemente escassos. Enquanto a atenção diária do exército norte-americano está concentrada no Iraque e Afeganistão, os estrategistas norte-americanos olham para além destes dois conflitos com o objetivo de prever o meio em que irá ocorrer o combate global em tempos vindouros. E o mundo que eles enxergam é um no qual a luta pelos recursos vitais — mais do que a ideologia ou a política de equilíbrio de poder — domina o campo da guerra. Acreditando que os EUA devem reconfigurar suas doutrinas e forças para prevalecer em semelhante entorno, os oficiais mais veteranos deram os passos necessários para melhorar seu planejamento estratégico e capacidade de combate. Apesar de que muito pouco disto tudo chegou ao domínio público, há um bom número de indicadores-chave. A partir de 2006, o Departamento de Defesa, em seu relatório anual “Capacidade Militar da República Popular da China”, coloca no mesmo nível a competição pelos recursos e o conflito em torno de Taiwan como a faísca que poderia desencadear uma guerra com a China. A preparação de um conflito com Taiwan permanece como “uma razão importante” na modernização militar chinesa, segundo indica a edição de 2008, mas “uma análise das aquisições recentes do exército chinês e do seu pensamento estratégico atual sugere que Pequim também está desenvolvendo outras capacidades do seu exército, para outro tipo de contingências, como, por exemplo, o controle sobre os recursos.”
O relatório considera, inclusive, que os chineses estão planejando melhorar sua capacidade para “projetar seu poder” nas zonas que em obtêm matérias-primas, especialmente combustíveis fósseis, e que esses esforços podem supor uma significativa ameaça para os interesses da segurança norte-americana.
O Pentágono também está solicitando, neste ano, fundos para o estabelecimento do Africa Command (Africom), o primeiro centro de mando unificado transatlântico desde que, em 1983, o presidente Reagan criou o Central Command (Centcom) para proteger o petróleo do Golfo Pérsico. A nova organização vai concentrar seus esforços, supostamente, na ajuda humanitária e na “guerra contra o terrorismo”. Mas em uma apresentação na Universidade Nacional de Defesa, o segundo comandante do Africom, o Vice-Almirante Robert Moeller, declarou que “a África tem uma importância geoestratégica cada vez maior” para os EUA — o petróleo é um fator-chave — e que entre os desafios fundamentais para os interesses estratégicos norte-americanos na região está a “crescente influência na África” por parte da China.
A Rússia também é contemplada através da lente da competição mundial pelos recursos. Apesar de que a Rússia, diferentemente dos EUA e da China, não precisa importar petróleo nem gás natural para satisfazer suas necessidades nacionais, esse país quer dominar o transporte de energia, especialmente para a Europa, o que tem causado alarme nos oficiais veteranos da Casa Branca, que receiam uma restauração do status da Rússia como superpotência e temem que o maior controle desse país sobre a distribuição de petróleo e gás na Europa e na Ásia possa enfraquecer a influência norte-americana na região. Em resposta à ofensiva energética russa, a administração Bush está empreendendo contramedidas.
“Tenho a intenção de nomear... um coordenador especial de energia, que dedicará especialmente todo o seu tempo à região da Ásia Central e do mar Cáspio”, informou, em fevereiro, a Secretária de Estado Condoleezza Rice ao Comitê de Assuntos Exteriores do Senado. “É uma parte verdadeiramente importante da diplomacia.” Um dos principais trabalhos deste coordenador, segundo declarou Rice, será o de promover a construção de oleodutos e gasodutos que cincunvalem a Rússia, com o objetivo de diminuir o controle desse país sobre o fluxo energético regional. Tomados em conjunto estes e outros movimentos semelhantes sugerem que houve um deslocamento da política: em um momento em que as reservas mundiais de petróleo, gás natural, urânio e minérios industriais chave —como o cobre e o cobalto— começam a diminuir e a demanda por esses mesmos recursos está disparando, as maiores potências mundiais desesperam-se por conseguir o controle sobre o que resta das reservas ainda sem explorar. Estes esforços geralmente envolvem uma intensa guerra de lances nos mercados internacionais, o que explica os preços recordes que estão alcançando todos estes produtos, mas também adotam uma forma militar, quando começam a ser feitas transferências de armamento e são organizadas missões e bases transatlânticas. Para reafirmar a vantagem dos EUA —e para contrabalançar movimentos similares da China e outros competidores pelos recursos— o Pentágono situou a competição pelos recursos no próprio centro do seu planejamento estratégico.

Alfred Thayer Mahan, revisitado

Não é a primeira vez que os estrategistas norte-americanos dão máxima prioridade à luta global pelos recursos. No final do século XIX, um atrevido grupo de pensadores militares liderados pelo historiador naval e presidente do Naval War College, Alfred Thayer Mahan, e seu protégé, o então Secretário Assistente da Marinha, Theodore Roosevelt, fizeram uma campanha exigindo uma Marinha norte-americana forte e a aquisição de colônias que garantissem o acesso aos mercados de ultramar e às matérias-primas. Seus pontos de vista ajudaram pontualmente a aumentar o apoio da opinião pública à Guerra Hispano-Americana e, após sua conclusão, ao estabelecimento de um império comercial norte-americano no Caribe e no Pacífico. Durante a Guerra Fria, a ideologia governou completamente a estratégia norte-americana de contenção da URSS e de derrota do comunismo. Mas mesmo nesse momento não foram totalmente abandonadas as considerações em torno dos recursos.
A doutrina Eisenhower, de 1957, e a doutrina Carter, de 1980, apesar de acomodarem-se à habitual retórica anti-soviética da época, pretendiam sobretudo assegurar o acesso dos EUA às prolíficas reservas de petróleo do Golfo Pérsico. E quando o presidente Carter estabeleceu, em 1980, o núcleo do que mais tarde seria o Centcom, sua principal preocupação era a proteção do fluxo de petróleo proveniente do Golfo Pérsico, e não a contenção das fronteiras da União Soviética. Após o fim da Guerra Fria, o presidente Bush tentou —e não conseguiu— estabelecer uma coalizão mundial de estados com ideologias afins (uma “Nova Ordem Mundial”), que deveria manter a estabilidade mundial e permitir aos interesses empresariais (com as companhias norte-americanas à frente) estender seu alcance por todo o planeta. Este enfoque, embora suavizado, foi adotado depois por Bill Clinton. Mas o ocorrido em 11-9 e a implacável campanha contra os “estados canalhas” (principalmente contra o Iraque de Saddam Hussein e o Irã) da atual administração Bush recolocaram o elemento ideológico no planejamento estratégico norte-americano. De acordo com o que foi apresentado por George W. Bush, a “guerra contra o terrorismo” e os “estados canalha” são os equivalentes contemporâneos das anteriores lutas ideológicas contra o fascismo e o comunismo.
Examinando mais de perto estes conflitos, contudo, é impossível separar o problema do terrorismo no Oriente Médio, ou o desafio do Iraque e do Irã, da história da extração de petróleo naquelas regiões por parte de empresas ocidentais. O extremismo islâmico, do tipo propagado por Osama Bin Laden e Al Qaeda na região, tem muitas raízes, mas uma das mais importantes afirma que o ataque ocidental e a ocupação de terras islâmicas —e a resultante profanação das culturas e povos muçulmanos— é produto da sede de petróleo dos ocidentais. “Lembrem também que a razão mais importante que os nossos inimigos têm para controlar nossas terras é a de roubar nosso petróleo”, disse Bin Laden para seus simpatizantes em uma gravação sonora datada em dezembro de 2004. “Ou seja, que devem fazer o que estiver em suas mãos para deter o maior roubo de petróleo da história.
" De modo similar, os conflitos dos EUA com o Iraque e Irã foram modelados pelo princípio fundamental da doutrina Carter, que diz que os EUA não permitirão que surja uma potência hostil que possa conseguir, em um momento dado, o controle do fluxo de petróleo no Golfo Pérsico, e com isso, em palavras do vice-presidente Cheney, “ser capaz de ditar o futuro da política energética mundial.” O fato de que estes países possivelmente estão desenvolvendo armas de destruição massiva somente complica a tarefa de neutralizar a ameaça que representam, mas não altera a lógica estratégica subjacente no fundo dos planos de Washington. A preocupação sobre a segurança do fornecimento de recursos tem sido, então, uma característica central no planejamento estratégico há bastante tempo. Mas a atenção que agora se presta a essa questão representa uma mudança qualitativa no pensamento norte-americano, igualável apenas aos impulsos imperiais que levaram à Guerra Hispano-Americana um século atrás. Contudo, nesta ocasião o movimento está motivado não por uma fé otimista na capacidade norte-americana de dominar a economia mundial, mas por uma perspectiva francamente pessimista sobre a disponibilidade dos recursos vitais no futuro e pela intensa competição por eles, da qual participam a China e outros motores econômicos emergentes. Enfrentando este duplo desafio, os estrategistas do Pentágono acreditam que assegurar a primazia norte-americana na luta pelos recursos mundiais deve ser a prioridade número um da política militar norte-americana.

Volta ao futuro

Alinhada com este novo enfoque, a ênfase está colocada agora no papel mundial que deve desempenhar a Marinha norte-americana.
Utilizando uma linguagem que teria sido surpreendentemente familiar para Alfred Mahan e o primeiro presidente Roosevelt, a Marinha, os marines e a guarda costeira revelaram em outubro um documento intitulado “Uma estratégia cooperativa para o poder naval no século XXI”, no qual se destaca a necessidade dos EUA de dominar os oceanos e garantir para si as principais rotas marítimas que conectam o país com seus mercados de ultramar e com as reservas de recursos. Nas quatro décadas passadas, o comércio marítimo mundial quadruplicou: 90% do comércio mundial e dois terços do petróleo são transportados por mar. As rotas marítimas e a infra-estrutura costeira que as apóiam são a tábua de salvação da atual economia global. Expectativas de crescimento cada vez maiores e o aumento da competição pelos recursos, junto com a escassez, podem servir como motivação para que as nações façam cada vez mais reclamações de soberania sobre parcelas cada vez maiores do oceano, das vias fluviais e dos recursos naturais, e de tudo isso podem resultar potenciais conflitos. Para enfrentar este perigo, o Departamento de Defesa empreendeu uma modernização total da sua frota de combate, o que inclui o desenvolvimento e obtenção de novos porta-aviões, destróieres, cruzadores, submarinos e um novo tipo de nave de “combate litorâneo” (armamento costeiro), um esforço que levará décadas completar e que consumirá centenas de milhares de milhões de dólares. Alguns dos elementos deste plano foram revelados pelo presidente Bush e pelo Secretário de Defesa Gates na proposta de orçamento para o ano fiscal 2009, apresentada no passado mês de fevereiro. Entre os artigos mais caros do orçamento destacam os seguintes:
- 4,2 bilhões de dólares para a principal embarcação de uma nova geração de porta-aviões com propulsão nuclear.
- 3,2 bilhões de dólares para um terceiro míssil para o destróier classe "Zumwalt". Estas embarcações de guerra com camuflagem avançada irão servir também como plataforma de teste para um novo tipo de mísseis cruzeiro, os CG(X).
- 1,3 bilhões de dólares para as duas primeiras embarcações de combate litorâneo.
- 3,6 bilhões de dólares para um novo submarino classe Virgínia, a embarcação de combate subaquático mais avançada do mundo, atualmente em produção.
Os programas de construção naval propostos terão um custo de 16,9 bilhões no ano fiscal de 2009, depois dos 24,6 bilhões de dólares votados para o ano fiscal 2007-2008. O novo enfoque estratégico da Marinha reflete-se não só na obtenção de novas embarcações, mas também no posicionamento dos que já existem. Até pouco tempo atrás, a maioria dos ativos navais estavam concentrados no Atlântico Norte, no Mediterrâneo e no Pacífico Noroeste, em missões de apoio às forças da OTAN norte-americanas e em virtude dos pactos de defesa com a Coréia do Sul e o Japão.
Estes vínculos aparecem de maneira muito destacada nos cálculos estratégicos, mas aumenta cada vez mais a importância da proteção dos enlaces comerciais vitais no Golfo Pérsico, no sudeste do Pacífico e no Golfo da Guiné (próximo aos maiores produtores de petróleo da África). Em 2003, por exemplo, o chefe do US European Command declarou que os porta-aviões de combate sob seu comando estariam menos tempo no Mediterrâneo e “durante metade do seu tempo desceriam para a costa oeste da África.” Um enfoque similar guia a restruturação das bases de ultramar, que em grande medida haviam permanecido intactas nos últimos anos. Quando a administração Bush chegou ao poder, a maioria das principais bases estavam na Europa Ocidental, no Japão ou na Coréia do Sul.
Por insistência do então Secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, o Pentágono começou a mobilizar forças da periferia da Europa e da Ásia para suas regiões centrais e do sul, especialmente a Europa Central e Oriental, o centro da Ásia e o sudeste asiático, assim como no norte e centro da África. É verdade que essas zonas são o lar da Al Qaeda e dos “estados-canalha” do Oriente Médio, mas também é verdade que aí está 80% ou mais das reservas mundiais de gás natural e petróleo, assim como reservas de urânio, cobre, cobalto e outros materiais industriais cruciais. E, como já foi dito antes, é impossível separar uma coisa da outra nos cálculos estratégicos norte-americanos.
Outro ponto importante a considerar é o plano norte-americano para manter uma infra-estrutura básica com a finalidade de apoiar as operações de combate na bacia do Mar Cáspio e na Ásia Central.
Os vínculos americanos com os estados desta região foram estabelecidos anos antes do 11-9 para proteger o fluxo do petróleo do Mar Cáspio para o Ocidente. Acreditando que a bacia do mar Cáspio seria uma nova e valiosa fonte de petróleo e gás natural, o presidente Clinton trabalhou aplicadamente para abrir as portas à participação norte-americana na produção energética da zona, e embora advertido dos antagonismos étnicos endêmicos da região, tentou reforçar a capacidade militar das potências aliadas do lugar e preparar uma possível intervenção das forças norte-americanas na zona.
O presidente Bush redobrou estes esforços, aumentando o fluxo da ajuda militar norte-americana e estabelecendo bases militares nas repúblicas da Ásia Central. Uma mistura de prioridades governa os planos do Pentágono para reter uma constelação de bases “duradouras” no Iraque.
Muitas destas instalações serão, sem dúvida, utilizadas para continuar dando apoio às operações contra as forças insurgentes, para atividades de inteligência militar e para o treinamento do exército e unidades policiais iraquianas. Mesmo se todas as tropas de combate norte-americanas fossem retiradas, de acordo com os planos anunciados pelos senadores Clinton e Obama, algumas destas bases seriam, com toda probabilidade, mantidas para atividades de treinamento, que tanto Clinton quanto Obama já afirmaram que irão continuar. Por outro lado, pelo menos algumas das bases estão especificamente dedicadas à proteção das exportações de petróleo iraquiano. Em 2007, por exemplo, a Marinha revelou que tinha construído uma instalação de direção e controle sobre e ao longo de um terminal de petróleo iraquiano no Golfo Pérsico, com a finalidade de supervisionar a proteção dos terminais de extração mais importantes da zona.

Uma luta global

Nenhuma outra das principais potências mundiais é capaz de igualar os Estados Unidos na hora de mobilizar sua capacidade militar na luta pela proteção das matérias-primas de vital importância. Contudo, as outras potências estão começando a desafiar seu domínio de várias maneiras. China e Rússia, em especial, estão proporcionando armas aos países em vias de desenvolvimento produtores de petróleo e gás e estão, também, começando a melhorar sua capacidade militar em zonas-chave de produção energética. A ofensiva chinesa para ganhar acesso às reservas estrangeiras é evidente na África, onde Pequim estabeleceu vínculos com os governos produtores de petróleo da Argélia, Angola, Chade, Guiné Equatorial, Nigéria e Sudão. A China também tem procurado acesso às abundantes reservas minerais africanas, perseguindo as reservas de cobre da Zâmbia e do Congo, de cromo no Zimbabue e um leque de diferentes minerais na África do Sul. Em cada caso os chineses têm conquistado o apoio destes países provedores com uma diplomacia ativa e constante, ofertas de planos de assistência para o desenvolvimento e empréstimos com juros baixos, chamativos projetos culturais e, em muitos casos, com armamento.
A China é agora o maior provedor de equipamentos básicos de combate para muitos destes países, e é especialmente conhecida por vender armas para o Sudão, armas que têm sido utilizadas pelas forças governamentais em seus ataques contra as comunidades civis de Darfur. Além disso, assim como os EUA a China tem complementado suas transferências de armas com acordos de apoio militar, o que leva a uma presença constante de instrutores, conselheiros e técnicos chineses na zona, competindo com seus homólogos norte-americanos pela lealdade dos oficiais militares africanos. O mesmo processo está ocorrendo, em grande medida, na Ásia Central, onde China e Rússia cooperam, com o auspício da Shanghai Cooperation Organization (SCO), para proporcionar armamento e assistência técnica aos "istãos" da Ásia Central [Kazaquistão, Uzbequistão, Turcomenistão, Tadjiquistão e Quirguizistão], mais uma vez competindo com os EUA para conquistar a lealdade das elites militares locais. Nos anos 1990 a Rússia esteve preocupada demais com a Chechênia para prestar atenção a esta zona, e a China, por sua vez, estava concentrada em outras questões, que considerava prioritárias, ou seja que Washington contou com uma vantagem temporária.
Contudo, nos últimos cinco anos Moscou e Pequim têm concentrado seus esforços em ganhar influência na região.
O resultado de tudo isso é uma paisagem geopolítica muito mais competitiva, com Rússia e China, unidas através da SCO, ganhando terreno em sua ofensiva para minimizar a influência norte-americana na região. Uma amostra clara desta ofensiva foi o exercício militar realizado pela SCO no passado verão, o primeiro desta natureza, no qual participaram todos os estados membros. As manobras envolveram um total de 6.500 membros, procedentes do pessoal militar da China, Rússia, Kazaquistão, Quirguizistão, Tadjiquistão e Uzbequistão, e ocorreram na Rússia e na China.
Além do seu significado simbólico, o exercício era indicativo dos esforços chineses e russos para melhorar suas capacidades militares, dando forte ênfase a tudo o que tivesse relação com suas forças de assalto a longa distância. Pela primeira vez um contingente de tropas chinesas aerotransportadas foi mobilizado fora do território chinês, um sinal claro da crescente autoconfiança de Pequim. Para garantir que a mensagem destes exercícios não passasse desapercebida, os presidentes da China e da Rússia aproveitaram a ocasião para organizar uma cúpula da SCO no Quirguizistão e advertir os Estados Unidos (embora esse país não tenha sido mencionado) de que não permitiriam intromissões de nenhum tipo nos assuntos da Ásia Central. Em seu chamamento por um mundo "multipolar", por exemplo, Vladimir Putin declarou que “qualquer tentativa de resolver problemas mundiais e regionais de maneira unilateral será em vão.”
Por sua vez, Hu Jintao fez notar que “as nações da SCO conhecem com clareza as ameaças que a região enfrenta e devem garantir sua proteção por si mesmas.” Estes e outros esforços da China e da Rússia, combinados com a escalada de ajuda militar norte-americana para alguns estados da região, são parte de uma maior, embora muitas vezes oculta, luta pelo controle do fluxo do petróleo e do gás natural da bacia do Mar Cáspio para os mercados da Europa e da Ásia. E esta luta, por sua vez, não é mais do que parte da luta mundial pelo controle da energia. O maior risco desta luta é que ela, algum dia, exceda os limites da competição econômica e diplomática e entre em cheio no terreno militar.
Não acontecerá, é claro, porque algum dos estados envolvidos tome a decisão deliberada de provocar uma guerra contra um dos seus concorrentes, porque os líderes de todos estes países sabem com certeza que o preço da violência é alto demais considerando o que obteriam em troca.
O problema é, em compensação, que todos eles estão tomando parte em ações que fazem com que o início de uma escalada involuntária seja cada dia mais plausível. Estas ações incluem, por exemplo, a mobilização de um número cada vez mais elevado de conselheiros e instrutores militares americanos, russos e chineses em zonas de instabilidade nas quais estes estrangeiros podem acabar, qualquer dia, apanhados em bandos opostos em conflito.
O risco é ainda maior se considerarmos que a produção intensificada de petróleo, gás natural, urânio e minerais é, em si, uma fonte de instabilidade, que age como um imã para as entregas de armamento e a intervenção estrangeira. As nações envolvidas são quase todas pobres, portanto aquele que controlar os recursos vai controlar as únicas fontes seguras de abundante riqueza material. Esta situação é um convite para a monopolização do poder para que as elites cobiçosas utilizem seu controle sobre o exército e a polícia para eliminar seus rivais.
O resultado de tudo isso é, quase sem exceção, a criação de um bando de capitalistas instalados firmemente no poder, os quais utilizam com brutalidade as forças de segurança e terminam rodeados por uma enorme massa de população desafeta e empobrecida, freqüentemente pertencente a um grupo étnico diferente, um caldo de cultivo idôneo para os distúrbios e a insurgência.
Esta é, hoje em dia, a situação na zona do delta do Níger, na Nigéria, em Darfur e no sul do Sudão, nas zonas produtoras de urânio do Níger, no Zimbabue e na província de Cabinda, na Angola (onde está a maior parte do petróleo do país) e outras muitas zonas que sofrem o que tem sido denominado como “maldição dos recursos.” O perigo está, nem precisa dizer, em que as grandes potências acabem imersas nestes conflitos internos. Não estamos traçando um cenário extemporâneo: EUA, Rússia e China estão proporcionando armamento e serviços de apoio militar às facções de muitas das disputas antes mencionadas: os EUA estão armando as forças governamentais na Nigéria e de Angola, a China proporciona ajuda às forças governamentais no Sudão e no Zimbabue, e a mesma coisa ocorre com o resto dos conflitos. Uma situação inclusive mais perigosa é a que existe na Geórgia, onde os EUA dão respaldo ao governo pró-ocidental do presidente Mijail Saakashvili, com armamento e apoio militar, enquanto a Rússia apóia as regiões separatistas de Abkhazia e Ossétia do Sul.
A Geórgia tem um importante papel estratégico para ambos os países, porque é lá que está o oleoduto Baku-Tbilisi-Ceyhan (BTC), que tem o aval dos EUA e transporta petróleo do Mar Cáspio para os mercados ocidentais. Atualmente, há conselheiros e instrutores militares norte-americanos e russos em ambas as regiões, em alguns casos inclusive há contato visual entre uns e outros. Não é difícil, portanto, conjeturar um cenário no qual um choque entre as forças separatistas e a Geórgia leve, querendo ou não, a um enfrentamento entre soldados russos e americanos, dando lugar a uma crise muito maior. É essencial que os EUA consigam inverter o processo de militarização da sua dependência de energia importada e diminuam sua competição com a China e a Rússia pelo controle de recursos estrangeiros. Fazendo isso, seria possível canalizar o investimento para as energias alternativas, o que levaria a uma produção energética nacional mais efetiva (com uma redução de preços no longo prazo) e proporcionaria uma ótima oportunidade para reduzir a mudança climática.
Qualquer estratégia focada em reduzir a dependência da energia importada, especialmente o petróleo, deve incluir um aumento do gasto em combustíveis alternativos, sobretudo fontes renováveis de energia (solar e eólica), a segunda geração de biocombustíveis (aqueles que são feitos a partir de vegetais não comestíveis), a gaseificação do carvão capturando as partículas de carbono no processo (de maneira que nenhuma dioxina de carbono escape para a atmosfera contribuindo com o aquecimento do planeta) e células de combustível hidrogênio, junto com um transporte público que inclua trens de alta velocidade e outros sistemas de transporte público avançados. A maior parte da ciência e da tecnologia para implementar estes avanços já está disponível, mas não as bases para tirá-los do laboratório ou da etapa de projeto piloto e promover seu desenvolvimento completo. O desafio é, então, o de reunir os milhares de bilhões —talvez trilhões— de dólares que serão necessários para isso.
O principal obstáculo para esta tarefa hercúlea é que desde o início choca com o enorme gasto que representa a competição militar pelos recursos de ultramar. Pessoalmente, considero que o custo atual de impor a doutrina Carter está entre os 100 e os 150 bilhões de dólares, sem incluir a guerra do Iraque. Estender essa doutrina para a bacia do Mar Cáspio e a África vai acrescentar muitos outros bilhões a essa conta. Uma nova guerra fria com China, com sua correspondente corrida armamentista naval, exigirá trilhões em gastos adicionais militares nas próximas décadas. Uma loucura: o gasto não vai garantir o acesso a mais fontes de energia, nem fará baixar o preço da gasolina para os consumidores, nem vai desanimar a China na sua busca por novas fontes de energia. O que realmente vai fazer será consumir o dinheiro que precisamos para desenvolver fontes de energia alternativas com as quais conjurar os piores efeitos da mudança climática. Tudo isso nos leva à recomendação final: mais do que embarcar em uma competição militar com a China, o que deveríamos fazer é cooperar com Pequim no desenvolvimento de fontes de energia alternativas e sistemas de transporte mais eficazes.
Os argumentos a favor da colaboração são esmagadores: estima-se que, juntos, os Estados Unidos e a China chegarão a consumir 35% das reservas mundiais de petróleo em 2025, e a maior parte dele terá que ser importado de estados disfuncionais. Se, como indicam amplamente as predições, as reservas mundiais de petróleo começarem a diminuir nessa época, nossos países estarão presos em uma perigosa luta por recursos cada vez mais limitados a zonas cronicamente instáveis do mundo. Os custos disso, em termos de gastos militares cada vez maiores e de uma inabilidade manifesta para investir em projetos sociais, econômicos e de meio ambiente que realmente valham a pena, serão inaceitáveis. Razão de sobra para renunciar a este tipo de competição e trabalhar juntos no desenvolvimento de alternativas ao petróleo, nos veículos eficientes e em outras inovações energéticas.
Muitas universidades e corporações chinesas e norte-americanas já começaram a desenvolver projetos conjuntos desta natureza, ou seja, que não deveria ser difícil prever um regime de cooperação ainda maior. Na medida que em que vamos nos aproximando das eleições de 2008, abrem-se dois caminhos à nossa frente. Um nos leva a uma maior dependência dos combustíveis importados, a uma militarização crescente da nossa relação de dependência do petróleo estrangeiro e a uma luta prolongada com outras potências pelo controle das maiores reservas existentes de combustíveis fosseis. A outra, leva a uma dependência atenuada do petróleo como fonte principal dos nossos combustíveis, ao rápido desenvolvimento de alternativas energéticas, a um baixo perfil das forças norte-americanas no estrangeiro e à cooperação com a China no desenvolvimento de novas opções energéticas. Rara vez uma eleição política teve maior transcendência para o futuro do nosso país.

* Michael T. Klare é professor de Paz e Segurança mundial na Universidade de Hampshire. Seu último livro, “Rising Powers, Shrinking Planet: The New Geopolitics of Energy”, foi publicado por Metropolitan Books em abril. Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores
(Carta Maior)

Mudanças no horizonte: os planos do Ipea para o Brasil

Por Antonio Biondi, especial para a Carta Maior
O Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) foi incumbido pelo presidente da República de elaborar um plano de desenvolvimento de médio prazo para o Brasil. O prazo dado pelo presidente Lula a Márcio Pochmann, presidente do Ipea, é no sentido de que o projeto seja apresentado até 2010. Mas, desde já, Pochmann, em conjunto com o ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger, trabalha na proposta. E faz questão de explicitar alguns dos elementos que devem nortear o plano em questão.
Nesta entrevista exclusiva, concedida à Carta Maior em seu gabinete em Brasília, Pochmann apresenta as premissas que embasam sua visão de futuro para o Brasil.
Entre os temas abordados pelo presidente do Ipea, estão a necessidade de o país melhorar a qualidade de suas exportações, a importância de uma política industrial que leve à produção de itens mais elaborados no país, e, o imperativo de o Brasil trabalhar com ainda mais afinco na diminuição da pobreza e das desigualdades, bem como na geração de postos de trabalho mais qualificados. A entrevista vem em boa hora: nesta semana, a Petrobrás se consolida como uma das maiores empresas do mundo em valor de mercado (a 5a no mapa global), e a 3a maior das Américas, deixando para trás gigantes como a Microsoft. E, nos quatro primeiros meses de 2008, a geração de empregos com carteira assinada no Brasil chegou a 846 mil novas vagas. Mais um recorde, que confirma a expectativa de 1,8 milhão de empregos formais gerados em 2008.
Carta Maior – Professor, tanto a direita quanto a esquerda do governo fazem uma crítica de que há migalhas para o social e muito para o capital. Outros setores afirmam que, diante da desigualdade secular que marca nosso país, o que se está mudando durante o governo Lula é na verdade muito pouco. Como você analisa essas questões?
Pochmann – Estamos na quinta década em que a participação dos salários na renda do país vem caindo. Nós temos um problema estrutural da desigualdade. O que se verificou no governo Lula foi que, de certa maneira, os de baixo, os mais pobres, tiveram espaço na agenda das políticas públicas. De certa maneira, essas pessoas têm sido beneficiadas, mas o que se percebe, por outro lado, é que praticamente todo mundo ganha no governo Lula. Os ricos também têm sido muito bem beneficiados, os faturamentos das empresas, os ganhos dos bancos, os ganhos das empresas estrangeiras, etc, não têm sido pequenos! Exatamente porque com o crescimento é possível que todos ganhem. Juntando esses aspectos, vejo com muito interesse as reformas que o Brasil deve fazer. Por exemplo, para que, na tributação, os impostos onerem de fato os mais ricos, e não os mais pobres – como acontece hoje. Nós temos hoje um espaço de construção de políticas públicas de um novo tipo, voltadas a corrigir as desigualdades geradas justamente durante o período do crescimento econômico [verificado durante a ditadura militar de 1964-1985]. Como nós estivemos submetidos durante mais de duas décadas a uma expansão da renda a um nível muito baixo, os maiores perdedores foram os pobres, os trabalhadores. Nos dias de hoje, é difícil encontrar alguém que tenha perdido: praticamente todos ganharam. Só que os ganhos não ocorrem na mesma velocidade. E a melhor maneira para reduzir a discrepância nas velocidades da expansão da riqueza, na absorção da riqueza, a meu modo de ver vem acompanhado de reformas, entre elas a reforma tributária, a reforma agrária e outras reformas sociais.
Carta Maior – E como você avalia a necessidade do Brasil de obter superávits comerciais, buscando ampliar suas exportações e enfatizaando aquela mais primárias?
Pochmann – Nosso risco, na medida em que fortalecemos as exportações sustentadas em bens primários, é de nos especializarmos em produzir bens de baixo valor agregado, pouco conteúdo tecnológico e que terminam associados a empregos de baixa qualidade, a empregos de reduzida remuneração. Isso praticamente inviabiliza a existência de uma classe média. Atualmente, quando se fala de uma nova classe média, estamos falando da emergência de uma classe média com rendimento de três salários mínimos, por exemplo. Não é uma classe média com renda de dez salários mínimos, vinte salários mínimos. É uma classe média baixa neste sentido. Isso se relaciona com a trajetória do país nos anos 80 para cá, e diz respeito a um certo enxugamento da classe média assalariada, e uma expansão da classe média proprietária, da classe média vinculada a pequenos negócios. Então, podemos dizer que a atual emergência da classe média diz respeito a empregos que não são tão precários – são empregos formais muitas vezes, ou vinculados aos pequenos negócios –, que têm uma indicação clara de transformação social do país. Mas a sua sustentabilidade pressupõem a continuidade do dinamismo da economia. Se houver uma desaceleração, possivelmente este segmento será fortemente atingido.
Carta Maior – Podemos afirmar que é necessário melhorar a pauta de exportações, e, ao mesmo tempo, apostar de forma mais firme ainda no mercado interno?
Pochmann – Eu diria que sim. Nós precisamos de uma política industrial, voltada a enriquecer as cadeias produtivas [a nova política industrial do governo Lula foi apresentada na segunda-feira passada (12), sob o nome de Plano de Desenvolvimento Produtivo – PNP]. O Brasil não pode produzir, exportar bens primários apenas. O Brasil precisa exportar bens que passam por processos de beneficiamento, o que permite maior produtividade, que por sua vez permite pagar salários maiores, e que gera, por conseqüência, maior renda.
Carta Maior – Em sua análise, professor, para que direção o país caminha hoje? E como o Ipea e o governo devem trabalhar essas tendências, a fim de potencializá-las?
Pochmann – O Brasil está carente de uma visão de longo prazo, uma visão que unifique o governo e a sociedade. Este é o papel que o presidente Lula incumbiu ao ministro Mangabeira Unger e ao Ipea: produzir uma visão de longo prazo, uma orientação que possa dar convergência econômica e política ao país, que o coloque daqui a alguns anos em um patamar muito superior nestes aspectos ao verificado atualmente. Assim, estamos construindo um plano que deve ser participativo, que tenha as diferentes visões da sociedade. Se mantivermos um ritmo de crescimento de 5% ao ano – e talvez esssa seja a principal diferença do 2° governo Lula para o 1°, pois neste governo há o compromisso com o crescimento de 5% – em 2008, 2009 e 2010, nós teremos em três anos a geração de 7,5 milhões de empregos. Isso certamente será muito importante não apenas para absorver aqueles que estão chegando ao mercado de trabalho, mas também reduzir aqueles que estão desempregados há mais tempo. Neste cenário, chegaríamos ao ano de 2011 com uma taxa de desemprego equivalente a praticamente a metade da que temos hoje. Em termos históricos, em relação ao desemprego e remuneração dos trabalhadores, voltaríamos a uma situação econômica e social próxima àquela vivida nos anos 70 e início dos anos 80. Tais perspectivas nos apresentam uma oportunidade praticamente inédita para que as desigualdades sociais e a pobreza, assim como as discrepâncias que existem em termos de competição e de produtividade do Brasil em relação ao mundo, sejam muito menores do que as atualmente verificadas.
Carta Maior – Resumidamente, podemos portanto apontar algumas questões centrais neste projeto de longo prazo...
Pochmann – Reforma tributária e outras reformas sociais, melhoria na pauta de exportações, fortalecimento do mercado interno, ampliação do acesso ao crédito... E a bancarização da população, sobretudo dos micro e pequeno empreendimentos, que não têm acesso na quantidade necessária ao crédito e à assistência tecnológica.
(Carta Maior)

Modelo brasileiro de produção e uso de bioenergia deve ser seguido, afirma diretor da ONU

Por Sabrina Craide, da Agência Brasil
A forma como o Brasil desenvolve e usa os biocombustíveis deve ser seguida por outros países, na avaliação do diretor-geral da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Onudi), Kandeh Yumkella. Natural de Serra Leoa, ele atua na sede da Onudi em Viena, na Áustria, e passou quatro dias em Foz do Iguaçu para participar do Fórum Global de Energias Renováveis. Em entrevista à Agência Brasil, Yumkella disse que é preciso ter cuidado para não generalizar a análise sobre os efeitos dos biocombustíveis na produção de alimentos. Segundo ele, cada país deve observar a sua realidade, levando em conta a sustentabilidade da produção de alimentos. “Esse é o tipo de diálogo aberto que devemos ter, em vez de acreditar que todas as formas de bioenergia são ruins, que é um perigo para a comida, não é verdade”, disse.
Ele acredita que exista relação entre a produção de bioenergia e o preço dos alimentos, mas afirma que o Brasil encontrou formas de fazer um balanço entre os estoques e a produção de combustíveis, além de prestar atenção nos impactos ambientais. “Este é o modelo para o qual devemos olhar. Vocês sempre investiram em produção de alimentos e agronegócios ao mesmo tempo em que estavam desenvolvendo o setor de bioenergia.
O modelo de vocês foi muito eficaz”, afirma. Para Yumkella, o Brasil pode ajudar outros países com experiência e treinamento na área de energias renováveis e o conhecimento brasileiro neste setor poderia ser explorado economicamente.
“O Brasil deveria ver alguns países da América Latina e da África como lugares nos quais é possível aplicar algumas dessas idéias comercialmente”, disse. Yumkella disse que saiu “inspirado e encorajado” do Fórum Global de Energias Renováveis, por ver que existem muitas possibilidades e que vários países já têm planos nesta área. Ele defende, no entanto, que os governos invistam mais neste setor para que as pesquisas sejam melhor desenvolvidas e, em conseqüência, haja uma redução nos preços. Ele destacou a forma como o Brasil integra a produção de energias renováveis com a comunidade agrícola e disse que os investimentos feitos para o desenvolvimento do etanol poderiam ser estendidos para outras fontes, como a biomassa.
(Envolverde/Agência Brasil)

Os ricos não cumprem objetivos para deter a perda de biodiversidade

Por Julio Godoy, da IPS
A IX Conferência das Partes da Convenção da ONU sobre Diversidade biológica (COP9) começou esta semana na cidade alemã de Bonn tendo como pano de fundo a evidência de que muitos países, sobretudo do Norte, não cumprem seu declarado objetivo de deter a perda de biodiversidade. Mais de um quarto das espécies animais se extinguiram desde 1970 devido a ações humanas, segundo estudo apresentado pelo Fundo Mundial para a Natureza (WWF) antes do início da conferência da Organização das Nações Unidas. A COP9 começou segunda-feira (19) e vai até o próximo dia 30. Entre 1970 e 2005, o Índice de Vida no Planeta (LPI) “caiu 27%), segundo o informe, que alerta que essa redução foi mais acentuada nos Estados-membros da União Européia: 35% entre 1990 e 2005. O estudo do WWF diz que a perda na biodiversidade se deteve temporariamente e que algumas espécies se recuperam, mas, “todas as evidências indicam que alcançamos um ponto de inflexão a respeito de uma melhor conservação”, disse à IPS Christoph Heinrich, diretor de proteção ambiental na filial alemã da organização. “O desaparecimento mundial de espécies continua”, alertou. O LPI é um índice consensuado internacionalmente para medir os progressos rumo à meta de reduzir as perdas de biodiversidade até 2010. Utiliza as tendências de população das espécies para constatar os avanços e retrocessos. O Índice reflete o acompanhamento de 241 espécies de peixes, 83 de anfíbios, 811 de aves e 302 de mamíferos. Os dados sobre as espécies marinhas, terrestres e de água doce são calculados de forma separada e tira-se uma média para criar um índice agregado. “A biodiversidade sustenta a saúde do planeta e tem um impacto direto em nossas vidas”, disse o diretor-geral do WWF, James Leape. “Para dizer de maneira simples, a perda de biodiversidade implica que milhões de pessoas enfrentam um futuro no qual a disponibilidade de alimentos será mais vulnerável às pragas e enfermidades, e haverá um acesso irregular ou insuficiente à água potável”, disse Leape à IPS. “Ninguém pode escapar do impacto da perda de biodiversidade, porque sua perda implica claramente uma redução nos novos medicamentos disponíveis, maior vulnerabilidade aos desastres naturais e mais impacto derivado do aquecimento global”, acrescentou.
O estudo do WWF segue a linha de várias pesquisas que indicam que não há sinais de uma redução do ritmo na perda de biodiversidade. Em adição, fatores que a provocam, com alteração do uso da terra ou a mudança climática, agravarão o problema no futuro. Heinrich disse que múltiplas atividades humanas, como pesca em escala industrial, demanda por recursos energéticos, e suas conseqüências, com desmatamento e desertificação, mais as emissões de gases causadores do efeito estufa, continuam matando a flora e a fauna em todo o mundo. “Por isto, as futuras gerações enfrentarão fome, sede, doenças e desastres”, previu. Além disso, a perda de biodiversidade h um processo que se multiplica por si só. O desaparecimento de uma espécie altera o frágil equilíbrio da natureza, quebrando a cadeia alimentar nos habitats biológicos, o que coloca outras espécies em risco, forçando-as a emigrar, se adaptar ou morrer. A COP9 pretende avaliar o grau de cumprimento a respeito dos objetivos assumidos em 2002, para reduzir significativamente o desaparecimento de espécies, em nível global e nacional, até 2010. O encontro da ONU em Bonn acontece no contexto da Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD), tratado aprovado na Cúpula da Terra, realizada no rio de Janeiro em 1992. Os três principais objetivos da CBD são a conservação da biodiversidade biológica, o uso sustentável da flora e a fauna e compartilhar eqüitativamente entre todos os países os benefícios gerados pelos recursos genéticos. Em 2002, a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada em Johannesburgo, ratificou o objetivo de atingir até 2010 “uma significativa redução da atual taxa de perda de biodiversidade em níveis mundial, regional e nacional como uma contribuição à redução da pobreza e para beneficiar a vida no planeta”.
Nesse mesmo ano, os membros da União Européia fixaram um objetivo mais ambicioso: deter a perda de biodiversidade até 2010. Nenhuma das metas foi atingida, segundo grupos ambientalistas. A diversidade biológica provê a humanidade de um amplo espectro de benefícios, que incluem desde madeira até produtos medicinais e apoios essenciais como o ciclo de carbono, água não contaminada e redução dos riscos naturais. A COP9 também trata da questão da renovação da agricultura e da recuperação da diversidade biológica nela.
O secretário-executivo da CBD, Ahmed Djoghlaf, disse que “a agricultura é o melhor exemplo de com as atividades humanas impactam o funcionamento ambiental do planeta”. Além disso, afirmou que “durante os últimos 50 anos os humanos alteraram o ecossistema mais rápida e amplamente do que em qualquer outro período da historia. De fato, mais superfície de terra se converteu para cultivos do que nos séculos anteriores. Esta é a razão pela qual a biodiversidade e a agricultura estão na agenda da conferência de Bonn”. Este encontro, com mais de cinco mil delegados de 1912 países, acontece no momento em que a comunidade internacional enfrenta uma grave crise alimentar. O preço de alimentos básicos como trigo, milho e arroz chegaram a níveis recorde, ao mesmo tempo que as reservas mundiais de alimentos estão em seu nível mais baixo da historia. Um dos maiores desafios da humanidade é o de alimentar uma população em crescimento em um mundo onde a urbanização se acelera, o que se soma ao impacto da mudança climática e à perda de biodiversidade. Djoghlaf se referiu a como a agricultura moderna contribuiu para a destruição da biodiversidade. “Desde o alvorecer da humanidade as pessoas usaram mais de sete mil espécies vegetais para atender suas necessidades. Nos últimos cem anos, 75% das variedades que colhíamos desapareceram. Atualmente dependemos do arroz, do milho e do trigo, que fornecem mais de dois terços de nossas calorias”, afirmou.
(Envolverde/IPS)

sexta-feira, 16 de maio de 2008

IFC volta a financiar empreendimento controverso na Amazônia

Mesmo após ter enviado seu plano de ação para a região, banco continua investindo em projetos controversos

Filippo Cecilio

Contrariando a política que afirmou recentemente ter adotado para a região amazônica, o International Finance Corporatio (IFC), braço do Banco Mundial para o setor privado, está financiando novo empreendimento controverso na região. Serão emprestados R$ 40 milhões para o grupo SLC, grande plantador de soja e algodão em vários estados brasileiros, entre eles Mato Grosso e Maranhão. O dinheiro do empréstimo será utilizado para a compra de mais terras na região norte do país.
De acordo com Mairon Régis, assessor de imprensa do Fórum Carajás - conjunto de entidades que acompanha projetos na região do Carajás (PA) - esse interesse do SLC por novas terras é reflexo do avanço da fronteira agrícola no. "Com o avanço da cana-de-açúcar, chegando a locais que ele já tem terras, o SLC adquire essas novas propriedades e vai acumulando terreno e ampliando sua área de influência", diz.
ParadoxoO que mais chama a atenção nessa história é o comportamento do IFC. Há poucos meses o banco consultou diversas entidades da sociedade civil organizada sobre seu modo de atuação na região da Amazônia Legal brasileira. Criou-se um projeto piloto, colocado em consulta para receber críticas, sugestões, apontamentos e melhoramentos sobre a forma de atuação do banco no financiamento de projetos e atividades do setor privado no território amazônico.
O órgão do Banco Mundial deixa claro sua pretensão de criar um modelo que "orientará o IFC na seleção de novos investimentos e na implementação de um programa integrado de assistência técnica, o qual maximizará o desenvolvimento e o impacto ambiental positivo destes investimentos".
De acordo com Régis, o processo de aprovação do empréstimo pelo banco foi falho. "Em nenhum momento [o IFC]buscou diálogo com as organizações locais e regionais que atuam nas regiões do Maranhão onde provavelmente a empresa fará ofertas. Ainda esperamos que o IFC venha até nós, ele tem essa obrigação", afirma.
O problema MaranhenseEm nota, o Fórum Carajás afirma que a entidade teve acesso a documentos que comprovam que boa parte das fazendas do grupo SLC no estado está assentada em terra pública que foi grilada no ano de 2002 com as anuências do cartório do município de Buriti e do escritório regional do Ibama. "Para comprovar a veracidade da denúncia, na Gleba F da propriedade foi autorizado o desmatamento de todos os seus 888 hectares de Cerrado, sem a averbação em cartório da área do lote ou da área de reserva legal. Outra denúncia diz respeito ao aterramento da nascente do riacho Estrela, tributário do rio Munim, conforme relatos de moradores da região próxima", diz ainda o documento do Fórum. Até o fechamento da matéria, ninguém do IFC foi encontrado para comentar o caso.

Veja Também:
IFC consulta sociedade civil para projeto de investimentos na Amazônia
Data: 07/05/2008Fonte: Amazonia.org.br

Nada mais socioambiental que a pobreza

Por José Eli da Veiga em 13/05/2008
Fonte: Valor Econômico
O modo mais comum de acompanhar a evolução do número de pobres baseia-se na crença de que pobreza é insuficiência de renda monetária. Atenuante talvez seja a regra dos 25 países da União Européia, de considerar pobre quem obtém ganho inferior a 60% da renda mediana nacional. Bem melhor que a insistência norte-americana de ter montante absoluto como "linha" da pobreza. Mas que só é versão menos rígida da mesma crença.
Pois bem, entrou em crise mesmo essa abordagem européia do que já é chamado de "pobreza monetária", qualificação para explicitar que capta apenas um dos determinantes da pobreza. E não poderia haver melhor exemplo que o debate desencadeado na França devido ao empenho de seu presidente, Nicolas Sarkozy, em cortar um terço da pobreza até 2012. Os diálogos entre os atores sociais mais afetados e a equipe de Martin Hirsch, titular do "alto comissariado para as solidariedades ativas", já engendrou importante acordo pela adoção de amplo "painel de navegação" ("Le Monde", 08/05/2008, p.8).
Composto de 15 indicadores principais e 18 complementares - que abrangem aspectos fundamentais da habitação, do emprego, da educação e da saúde - tal painel permitirá que a cada outono seja feita avaliação circunstanciada da evolução da pobreza. Sem prejuízo, é claro, de que seja mantida a cobrança política da temerária meta presidencial: que o número de habitantes com renda monetária inferior a 60% da mediana (? 817 euros mensais em 2005) caia em cinco anos de 7,1 para 4,7 milhões (de 12,1% para 8% da população).
De maneira alguma poderia ter sido semelhante a abordagem do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em sua missão de monitorar a pobreza em todos os países membros da ONU. Não apenas porque a grande maioria sequer dispõe de informações estatísticas que hoje são consideradas elementares até em países emergentes. Também devido à preferência pela busca de um caminho que evite tanto a miopia imposta por uma raquítica linha de "pobreza monetária", quanto a hipermetropia fatalmente criada por um obeso "painel" com dezenas de indicadores.
Além das três dimensões-chave assumidas pelo Pnud desde 1990 - "conhecimento", "vida longa e saudável" e "decente padrão de vida" - o Indicador de Pobreza Humana para países de alto desenvolvimento (IPH-2) envolve uma quarta, a "exclusão social". Quatro dimensões avaliadas por quatro variáveis: porcentagem de analfabetos funcionais adultos, probabilidade ao nascer de não se passar dos 60 anos, pobreza monetária e taxa de desemprego de longo prazo.
Não faz sentido monitorar a pobreza sem uma perspectiva que seja simultaneamente ambiental, evitando a miopia da "pobreza monetária"
Para todos os demais países, o Pnud usa o IPH-1, versão "pé-de-boi" do mesmo indicador. Além de só ter as tradicionais três dimensões, a do conhecimento é captada pela taxa de alfabetização, a da longevidade por parâmetro de 40 anos em vez de 60 e a do nível de vida por dupla variável: porcentagem da população com acesso à água potável e porcentagem de crianças com peso inferior ao padrão.
Também acaba de ser lançado um indicador muito mais ambicioso, cujo objetivo é exprimir os vínculos umbilicais que essa abordagem tridimensional mantém com sua raiz ambiental em cinco dimensões: água, solo, biodiversidade, energia e ar. E essa primeira resposta a tão gigantesco desafio revela grande disparidade entre níveis de pobreza se medidos pelo IPH-1 ou por esse novo indicador provisoriamente chamado "P&E indicator".
Para nove países as diferenças são irrisórias: Chile, Argentina, Costa Rica, Cuba, México, Equador, Síria, Gâmbia e Zimbábue. Entretanto, para todos os demais são muito significativas as discrepâncias entre avaliação socioambiental e tão-somente social. Os casos mais chocantes são os da Nicarágua e de Honduras, países muito bem classificados pelo IPH-1 (34ª e 31ª posições), mas na lanterninha no ranking do "P&E" (140ª e 131ª). O Brasil também sai rebaixado, mas nem tanto: de 18º pelo IPH-1 para 52º pelo novo indicador. E não passam de quatro - e todos africanos - os países para os quais ocorre o inverso. Houve espetaculares upgrades em Botswana (de 80º a 9º), África do Sul (de 43º a 13º), Namíbia (de 46º a 18º), e Gabão (de 41º a 24º).
Este novo índice para medir um fenômeno que pode ser bem melhor caracterizado pela expressão "pobreza socioambiental" resultou de decisivo amadurecimento da cooperação entre o Pnud e seu irmão Pnuma, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Em ambos cresceu muito a convicção de que não haverá sucesso no combate à pobreza se for subestimada a importância de sua base natural ou ecológica. Como a degradação de muitos ecossistemas, só pode aumentar a fome, exacerbar doenças ou tirar crianças das escolas, e não faz qualquer sentido monitorar a pobreza sem uma perspectiva que seja simultaneamente ambiental. Daí ser impossível que se exagere nos elogios ao estudo "Poverty & Environment Indicators" (www.st-edmunds.cam.ac.uk/vhi/csc/research/), preparado para essa parceria Pnud-Pnuma por uma equipe internacional de economistas coordenada pelo brasileiro Flavio Comim (UFRGS e Universidade de Cambridge).
Claro, caberá à comunidade constituída pelos pesquisadores em Ciências Humanas avaliar a consistência desse trabalho sob os prismas teórico e metodológico, estágio preliminar do penoso processo de legitimação ao qual necessariamente se submete qualquer proposta de novo índice. E este não é o melhor espaço para que tais questões sejam abordadas.
No entanto, leitor atento deste jornal talvez lembre que resenha publicada pelo último caderno "Eu&Investimento" (8/5) trouxe um alerta sobre a impossibilidade estatística de se exprimir em uma única fórmula sintética tanto a sustentabilidade do processo socioeconômico quanto o grau de qualidade de vida que dele decorre. Por isso, é imprescindível deixar claro que este novo indicador de pobreza socioambiental ("P&E indicator") foca tão somente uma das principais faces da qualidade de vida, sem ter qualquer pretensão de também servir para avaliar a sustentabilidade do processo socioeconômico que a está gerando.
José Eli da Veiga , professor titular do depatamento de economia da FEA-USP e pesquisador associado do "Capability & Sustainability Centre" da Universidade de Cambridge, com apoio da Fapesp, escreve mensalmente às terças. Página web: www.zeeli.pro.br

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Diogo Mainardi encampa discurso neo-racista brasileiro

por Ismar C. de Souza
Com ataques cuidadosamente dosados contra a política de cotas universitárias implantadas no Brasil – que está sob julgamento no Supremo Tribunal Federal –, e, na verdade, querendo atingir todas as lutas do negro brasileiro, o colunista da revista Veja, Diogo Mainardi, encampou de vez o discurso neo-racista brasileiro. “É uma chance para acabar de vez com o quilombolismo retardatário que se entrincheirou no matagal ideológico das universidades brasileiras", afirma ele em "O quilombo do mundo" (edição 2057, 23/04/2008).
Mainardi se soma a outros jornalistas da Veja (impressa e on line) e a demais pessoas que recebem espaço na revista de maior circulação nacional para mover um combate sem tréguas à aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, à política de cotas universitárias, à figura de Zumbi dos Palmares, ao Dia da Consciência Negra e, enfim, à causa da reparação das injustiças cometidas contra a comunidade negra ao longo da História brasileira.
Entremeando afirmações tendenciosas e citações do livro “Não Somos Racistas” (acredite quem quiser...) do guru do combate ao movimento negro brasileiro, o diretor de Jornalismo da Rede Globo Ali Kamel, Mainardi se mostra ainda mais parcial quando tenta apoiar sua tortuosa racionália numa frase do senador de ascendência africana Barak Obama:
– Se olharem minhas filhas, Malia e Sasha, e disserem que elas estão numa situação bastante confortável, então (raça) não deveria ser um fator. Por outro lado, se houver um jovem branco que trabalhe, que se esforce, e que tenha superado grandes dificuldades, isso é algo que deveria ser levado em consideração.
Tratou-se de um comentário superficial e meio confuso, proferido durante um debate eleitoral. A conclusão de que Obama “quebrou um tabu e defendeu abertamente o fim das cotas raciais” é uma óbvia forçação de barra. Mainardi subestima a inteligência dos seus leitores.
Agora vejamos o que a Veja, preconceituosamente, em sua página de internet, via outro jornalista da turma do Mainardi (Reinaldo Azevedo, postado em www.veja.com.br/reinaldo, no dia 07/01/2008, 15h51), opinou sobre o mesmo senador e candidato a candidato do Partido Democrata:
– Que diabo se passa com o Partido Democrata americano, que tem como favoritos uma mulher e um negro com sobrenome islâmico e nenhum homem branco para enfrentá-los? (...) Para bom entendedor: tomo o par “homem branco” como apelo simbólico à tradição e à conservação de um modelo que, inegavelmente, deu certo e fez a maior, mais importante e mais rica democracia do mundo, que venceu, por exemplo, o embate civilizatório com o comunismo.
Como esse preconceito mal dissimulado ofende a qualquer ser humano digno desse nome, só restou à tropa de elite da Veja buscar o apoio da trupe dos conservadores raivosos, dos reacionários empedernidos e de alguns parlamentares influenciáveis que estão tentando barrar a implantação do Estatuto da Igualdade Racial.
Políticas de incentivo à integração do negro.Foi apenas em junho de 1998 que o Brasil empossou seu primeiro ministro de Estado negro, o mineiro Carlos Alberto Reis de Paula. Num país de aproximadamente 183 milhões de habitantes, com 11,5 milhões (6,3%) de negros, isto comprova que o Brasil é sim, um país racista, ainda que de uma forma dissimulada.
O certo é que só recentemente o problema da integração e participação digna do negro na sociedade passou a ter visibilidade nacional como política de Estado. E já produziu efeitos, pois agora são cinco os negros que participam como ministros do Governo Federal. Antes, só entravam como empregados subalternos.
Os interesses e idiossincrasias de nossa elite conservadora produziram convicções escravocratas que se tornaram estereótipos, ultrapassando os limites do simbólico e incidindo sobre os demais aspectos das relações sociais. Por isso, talvez ironicamente, a ascensão dos negros na escala social, por menor que seja, sempre deu lugar a manifestações veladas ou ostensivas de ressentimentos.
Ao mesmo tempo, a opinião pública foi, por muito tempo, treinada para desdenhar e, mesmo, não tolerar a inconformidade, vista como um injustificável complexo de inferioridade, já que o Brasil, segundo a doutrina oficial, jamais acolheu a discriminação ou preconceito.
Cotas raciais nos EUA e no Brasil A campanha pelos direitos civis nos Estados Unidos, que ganhou notoriedade internacional com a marcha de quase meio milhão de pessoas até Washington em 1963, foi o embrião da política oficial de cotas raciais, implementada a partir de 1970.
Em 1965, quando foi assinada a lei permitindo o voto e a eleição de negros nos EUA, a esmagadora maioria era pobre; assim, na primeira eleição, pouco mais de uma centena deles conquistou mandatos públicos. Hoje são mais de 8 mil.
Primeiro país a implantar o sistema de cotas, os EUA contam (abril/2008) com uma candidata negra, Cynthia Mckinney, candidata pelo Green Party (Partido Verde estadunidense) à presidência da república e com Obama tendo grande chance de se tornar o postulante do Partido Democrata.
Se lá, como aqui, o sistema de cotas possui falhas e não resolveu todos os problemas raciais da nação, com certeza motivou um grande debate nacional e alavancou uma melhor participação dos negros em sua sociedade, tanto que estes já têm presença marcante na classe média, ao contrário do Brasil.
O reacionário Mainardi, contra tudo e contra todos Na contramão dos grandes pesquisadores e educadores brasileiros, o colunista da Veja chegou ao cúmulo de propor que o Brasil siga o exemplo dos EUA, extinguindo totalmente a gratuidade no ensino superior:
– Se é para macaquear os Estados Unidos, temos de macaqueá-los por inteiro. A universidade pública americana cobra mensalidade dos alunos. Quem pode pagar, paga. Os outros se arranjam com bolsas, empréstimos ou bicos.
Como se fosse possível equiparar dois países em estágios de desenvolvimento econômico tão diferentes! E como se os estudantes daqui tivessem a mesma facilidade em levantar recursos por meio de “bolsas, empréstimos ou bicos”!
Bem se vê que Mainardi, habitando ou não no Brasil, estará sempre a anos-luz de distância de nossa sofrida realidade... o que não o impede de tentar, arrogantemente, ensinar a nós, nativos, como devemos viver, segundo o figurino da metrópole.
A violência policial e o silêncio cúmplice dos neo-racistasNegros de qualquer classe social, no Brasil, são tratados da forma mais preconceituosa e arbitrária pelas autoridades policiais – vide o caso do dentista Flávio Ferreira Sant'Ana, assassinado em 2004 na zona norte paulistana apenas por suspeitarem que tivesse roubado o luxuoso carro que dirigia.
É nas estatísticas da violência policial contra os negros que as contradições da sociedade brasileira se mostram mais agudas, como se depreende, por exemplo, de uma pesquisa que o Datafolha realizou em 1997 na cidade de São Paulo:
a escolaridade e condição financeira têm pouca influência sobre a freqüência e incidência das revistas policiais e da violência praticada pela polícia;
entre os da raça negra, quase metade (48%) já foi revistada alguma vez. Desses, 21% já foram ofendidos verbalmente e 14%, agredidos fisicamente por policiais;
os pardos superam os negros em ofensas: 27% deles foram ofendidos verbalmente e 12% agredidos fisicamente. Ao todo, 46% já foram revistados alguma vez;
a população branca é menos visada pela polícia. Entre estes, 34% já passaram por uma revista, 17% ouviram ofensas e 6% já foram agredidos, menos da metade da incidência entre negros.
Sobre a violência seletiva aplicada em muito maior escala e intensidade contra a população negra pelas polícias estaduais, os neo-racistas se calam, não escrevendo uma palavra sequer. Tais fatos não entram nas elocubrações deles, as vidas ou direitos destas pessoas não lhes interessam, pois na verdade não têm o que dizer sobre este assunto. Nem mesmo o guru Ali Kamel, que parece ter fixação por estatísticas, encontrou justificativa para estas.
Final rancoroso e melancólicoComo já fizera no título, Mainardi termina seu artigo dando uma conotação pejorativa à palavra quilombo:
– O Brasil se refugiou no passado. O Brasil é o quilombo do mundo.
Quilombo, segundo o dicionário Aurélio, é “estado de tipo africano formado, nos sertões brasileiros, por escravos fugidos”. Para nós, quilombo simboliza toda uma luta por liberdade e justiça. Ademais, como em alguns quilombos também viviam índios e brancos simpatizantes, pode ter sido o primeiro lugar no Brasil onde pessoas de raças diferentes conviveram harmoniosamente.
Destruidor de quilombos foi o bandeirante Domingos Jorge Velho, matador de negros do século XVII, até hoje relacionado entre os maiores assassinos de nossa História. Seus seguidores, como Mainardi, Reinaldo de Azevedo e Ali Kamel, atiram-se com o mesmo furor homicida contra a imagem dos quilombos. Só que, em vez de apertar gatilhos, comprimem teclas.
Não percebem, entretanto, que jamais conseguirão deletar as páginas de heroísmo escritas pelos negros, nem sua possibilidade de obterem agora o que lhes foi negado durante séculos.
Mas estão deletando a si próprios da civilização, eles sim refugiados num passado vergonhoso: aquele em que os preconceitos raciais ainda podiam ser expressos impunemente. Hoje, pelo contrário, só despertam perplexidade, indignação e asco.
Ismar C. de Souza é militante do Movimento Negro e articulista free lancer.

Depois de 120 anos, políticas para negros são insuficientes

Por Ivan Richard, da Agência Brasil
No dia 13 de maio de 1888, a princesa Isabel assinava o documento que declarava livres todos os escravos do Brasil. Cento e vinte anos depois da Lei Áurea, a situação de parte dos 90 milhões de afrodescendentes do país ainda é lamentável, segundo pesquisadores e organizações que defendem as políticas afirmativas para os negros.
"O melhor presente que a população negra pode receber nesses 120 anos de 'desescravização' é, precisamente, o Estado brasileiro aprofundar as políticas de igualdade social. Só assim vamos, de fato, construir uma nação mais eqüitativa e mais igualitária entre as diferentes populações que aqui habitam”, afirma o presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e coordenador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), Valter Roberto Silvério. Silvério diz que houve melhoras de condições, "mas tanto o acesso ao mercado de trabalho, quanto à escolarização, ainda são insuficientes para gerar um padrão de igual acesso, igual oportunidade da população negra quando comparada à população branca".
Para ele, as políticas públicas de discriminação positiva, como a definição de cotas nas universidades, são a melhor forma de promover a igualdade racial. Aos que contestam a instituição da política de cotas, ele declara que há um “cinismo, por parte da classe média brasileira", que nega a existência de racismo e que não admite que a educação tem o poder de combater o racismo, por medo de perder seus privilégios. "Esses grupos, que sempre tiveram privilégios, não percebem que essas políticas geram a possibilidade de construção de cidadania para o país, o aprofundamento da construção da cidadania", critica. O que se discute atualmente, segundo ele, é o aprofundamento de políticas que rejeitam as diferenças e resgatam a dívida histórica com os setores que foram oprimidos ao longo do tempo. A universidade, de acordo com o coordenador, é o espaço onde essas mudanças têm mais alcance pois forma as novas lideranças políticas, econômicas e sociais. Lideranças, destaca, mais tolerantes por conta do convívio com pessoas das diversas classes sociais, origens, etnias.
O ex-secretário de Justiça de São Paulo e coordenador do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade, uma ONG que defende a causa negra, Hédio Silva Junior, também defende a política de cotas. Para ele, o debate sobre as cotas fez emergir o racismo brasileiro. Na avaliação do ex-secretário, há um racismo “estruturante” no Brasil no qual de cada dez pobres, sete são negros. “Obviamente, que a condição social é importante, há desvantagens educacionais, mas foi o racismo que empurrou a população negra para esse lugar”, disse. Silva Junior critica aqueles que afirmam que as cotas vão estimular o racismo. Para ele, esse é um argumento “falacioso”. “No Brasil há sete documentos públicos em que os brasileiros são classificados racialmente.
No formulário de alistamento militar o jovem é classificado racialmente e nunca vi alguém criticar o Exército, as Forças Armadas. Não são as cotas que introduzem no Brasil a classificação social. Sempre existiu aqui. Um branco jamais poderia ser escravo”, exemplificou. Segundo Silva Junior, na retomada do debate das políticas afirmativas, nos anos 80, alguns diziam que o racismo não existia e citavam o sucesso de Pelé e Gilberto Gil como exemplos disso. Mas na verdade, contrapôs, não se conseguia enumerar mais que cinco negros bem sucedidos. “A própria expressão 'cada macaco no seu galho' tem um componente revelador de que a sociedade até tolerava viver com os negros, desde de que eles estivessem ocupando certos lugares. Mas quando você tem o negro reivindicando acesso a direitos, a lugares que a sociedade entendia como exclusivos da parcela branca, as pessoas ficam revoltadas”, acentuou.
Silva Junior avalia que a manifestação contrária às cotas tem um aspecto positivo: o estímulo ao debate. “O que lamento é que o debate seja feito de maneira tão desleal e covarde com o argumento de que a classificação racial é iniciada com a política de cotas.
O Estado brasileiro sempre impôs a classificação racial. As cotas são um remédio para essa doença que é o racismo no Brasil”. Apesar da constatação de que o racismo é um forte componente nas relações pessoais no Brasil, o ex-secretário aponta avanços na luta contra o preconceito racial. “Nos últimos anos, tem havido uma mudança muito grande na publicidade brasileira. Uma mudança muito forte imposta pelo movimento negro em relação a afirmação de figuras negras altivas e não apenas com a representação do negro associada à marginalidade e à pobreza. A própria propagando eleitoral mudou”, disse. Passados 120 anos do fim da escravidão no Brasil, o ex-secretário afirma que o sentimento é de otimismo. “Sou otimista no sentido dessas mudanças que o país tem vivido. Mas, ao mesmo tempo, temos um caminho muito grande até que haja uma verdadeira democracia racial no Brasil”.
(Agência Brasil/Carta Maior)

Nova certificação para construção civil

Por Redação Akatu No começo de abril chegou ao País a primeira alternativa para certificação de empreendimentos sustentáveis com adaptações às condições brasileiras. Coordenado pela Fundação Vanzolini, o selo Aqua (Alta Qualidade Ambiental) fará companhia ao Leed (Liderança em Energia e Desenho Ambiental, sigla em inglês), um selo americano já aplicado no Brasil. Ambos definem pré-requisitos e processos que devem ser atendidos pela obra, mas a principal diferença é que o Aqua trabalha com auditorias e não só com documentos, além de ter passado por ajustes à realidade brasileira.
“As adaptações foram feitas em função dos materiais usados pela construção brasileira, do nosso clima e do nosso tipo de energia”, informa Manuel Martins, diretor da Fundação Vanzolini. Entre as alterações, uma maior ênfase em canteiros de obras com baixo impacto ambiental e na gestão dos resíduos provenientes da construção, porque as obras brasileiras apresentam alta perda e desperdício de materiais. De acordo com Martins, são 14 os critérios analisados. Em cada um deles a construção recebe uma qualificação – bom, superior ou excelente. Para obter o selo, a obra tem que ser avaliada como excelente em, no mínimo, três quesitos e como superior em, no mínimo, quatro.
Alguns dos critérios compreendem a relação da construção com o seu entorno, a gestão da água, da energia e dos resíduos de uso e operação da edificação, o conforto higrotérmico (relativo à umidade e à temperatura), acústico e visual e a qualidade sanitária dos ambientes da construção, bem como a qualidade da água e do ar. O diretor da Fundação Vanzolini explica ainda que o processo de certificação se divide em três etapas. A primeira acontece a partir do planejamento da construção, quando são feitas discussões com os auditores do programa. Na fase do projeto, os auditores se asseguram das características acertadas previamente. Terminada a obra, uma terceira auditoria é feita para checar a realização do projeto. É, assim, uma certificação com viés mais conceitual, pelo acompanhamento do projeto por auditores e pela possibilidade de discussão sobre as tecnologias empregadas ao longo do processo. “O empreendedor também participa das auditorias”, diz Martins, que acredita que o custo geral de uma construção certificada ficará entre 1% e 5% mais caro do que as normais. “Ainda não sabemos se esse custo será repassado para o comprador, pois ainda não há no Brasil nenhuma construção certificada com o selo Aqua”, afirma. “O primeiro projeto piloto é um resort em Pernambuco que está sendo erguido”, diz o diretor. Segundo ele, mesmo que o comprador pague um pouco mais, a estimativa é que em dois anos esse valor seja recuperado pela economia de água, energia e pela duração dos materiais. Em um primeiro momento, o selo será válido apenas para empreendimentos comerciais. Em breve, a Fundação Vanzolini deve assinar um contrato com a Qualitel, associação que faz parte da francesa CTBS (Centro Tecnológico para Edificações Sustentáveis, sigla em francês), criadora do selo Aqua, para começar a certificar construções residenciais. Martins explica também que há um projeto em andamento liderado pela organização não-governamental GEA (Aliança Ambiental Global, na sigla em inglês) cujo objetivo é elaborar um modelo universal para construções verdes.
Já são 22 países interessados em participar e cada certificadora local tem a tarefa de sugerir modificações e harmonizações das regras de certificações para a realidade de seu país. A idéia é que a espinha dorsal do modelo seja comum, mas com flexibilidade para interpretações locais.
(Envolverde/Instituto Akatu)

Meta de inflação prejudica países pobres

Por Tiago Mali
Estabelecer metas de inflação, prática usada por diversas nações (inclusive o Brasil), pode ser prejudicial para economias vulneráveis a choques externos, especialmente as dos países da África Subsaariana, afirma um estudo do Centro de Internacional de Pobreza, uma instituição de pesquisa do PNUD, resultado de uma parceria com o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). No artigo Traçar Metas de Inflação para a África Subsaariana: Por que fazer agora? Por que fazer?, o economista Terry McKinley conclui que estabelecer metas de inflação pode ser uma política extremamente danosa a países pobres, especialmente no momento atual, em que a economia mundial "flutua à beira de uma desaceleração". O autor usa como exemplo Gana, país africano que, em maio de 2007, adotou um regime de metas de inflação como base da sua política monetária. A partir de então, a estabilidade de preços tornou-se o objetivo oficial do Banco Central do país. Entre as medidas tomadas para conter a inflação estiveram alta de juros e adoção de uma taxa de câmbio flexível – medidas também adotadas pelo Brasil. Mas o BC de Gana não conseguiu manter os preços dentro da meta. McKinley, diretor do Centro para Pesquisa e Políticas de Desenvolvimento, em Londres, mostra que o Banco Central do país africano subiu a taxa básica de juros de 12,5% para 13,5%, em novembro de 2007, e para 14,25%, em março deste ano. O aperto monetário, porém, não surtiu o efeito esperado: desde outubro de 2007, a inflação está um terço maior do que antes, em 13,2%, bem longe da meta estipulada, de 5%. O autor observa que o mesmo ocorreu na maior economia da região, a África do Sul, que também adotou o regime de metas de inflação. Só em janeiro, o preço dos alimentos subiu 14%, impulsionado pelo encarecimento dos gêneros alimentícios importados. A inflação anual chegou perto dos 9%, ultrapassou a meta (que era de 3% a 6% ao ano) e já é a maior desde 2003. A alta de preços na África Subsaariana é um problema ligado à importação, à inflação internacional, sustenta o economista. O artigo defende que as autoridades monetárias não podem agir no controle da inflação como se houvesse um excesso de consumo interno, sob a pena de enfraquecer a economia. Além disso, afirma, a elevação recente dos preços externos — e outras esperadas para breve — pode desvalorizar as taxas de câmbio, intensificando pressões inflacionárias. Mckinley argumenta que a alta dos preços nos alimentos já está abalando o poder de consumo em Gana. Esse fator, junto com o aumento na cotação do petróleo, pode fazer o crescimento econômico frear e a inflação decolar. Além disso, uma recessão nos Estados Unidos pode, direta ou indiretamente, deter o crescimento das exportações gananses, aprofundando o déficit comercial. Quadro semelhante tem chances de ocorrer em “muitos países da região”, diz o economista. Gerenciar taxas de câmbio e não amarrar a política econômica a um regime de metas de inflação, para o autor, é essencial para responder a esse cenário de "turbilhão iminente". O economista sugere estabilizar a taxa real de câmbio (para conseguir controlar melhor as pressões externas) e liberar políticas fiscais para apoiar o investimento interno e o consumo (o oposto do que tem sido feito com a elevação de taxas de juros), tendo em vista que os choques externos vão certamente piorar balanças comerciais e os projetos de crescimento.
(Pnud)

terça-feira, 13 de maio de 2008

“É preciso mudar as formas de produção e consumo”

Por Maurício Thuswohl, da Carta Maior
Os economistas Paul Singer (secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho) e João Pedro Stédile (membro da coordenação nacional do MST), foram convidados especiais do seminário Economia Solidária, Soberania Alimentar e Agroenergia, realizado na quinta-feira (8/5) em Maringá (PR), numa parceria entre a Unitrabalho, a Universidade Estadual de Maringá e o Sindicato dos Engenheiros do Paraná. Frente a uma platéia formada por agricultores familiares, assentados, técnicos, professores e representantes do poder público, Singer e Stédile abordaram temas como biocombustíveis, aquecimento global, crise na produção de alimentos, alta do preço do petróleo e organização da agricultura familiar, entre outros. Leia a seguir os principais trechos das intervenções de João Pedro Stédile e Paul Singer no seminário realizado em Maringá:

Contexto econômico da agricultura mundial.

Stédile - Estamos em uma nova fase do capitalismo, na qual os setores mais dinâmicos de controle são os bancos e as grandes empresas transnacionais que controlam os ramos de produção em nível global. O neoliberalismo, em termos de modelo econômico, significa que agora as economias do mundo estão dirigidas pelos bancos e empresas, esse é o novo poder econômico dos capitalistas. Nos últimos 15 anos, o capital fez esse movimento de construir grandes empresas para dominar todos os setores da economia. Luz elétrica, telefone, transporte, fábricas, etc, está tudo sob o controle desse capital estrangeiro e internacional.
Isso provocou grande mudança, pois nos últimos 15 anos as empresas passaram a controlar toda a produção agrícola mundial. Atualmente, não mais que 40 empresas controlam toda a produção de sementes, de fertilizantes químicos e de grãos, além do comércio desses grãos e da agroindústria (transformadora dos produtos alimentícios), ao ponto que hoje o preço dos produtos agrícolas não é mais determinado por cada agricultor em cada país, mas determinado pelo controle monopólico que essas empresas fazem em nível internacional.
As empresas manipulam os preços de acordo com seu interesse de manter sempre altas taxas de lucro. Essas empresas vieram para os países do terceiro mundo, se aliaram aos grandes produtores de terra e estes se subordinam a essa forma de produção agrícola.
O capital entrou com a terra e com a espoliação do meio ambiente através da aplicação de altos índices de agrotóxicos e da produção intensiva. Além disso, o capitalista explora os trabalhadores rurais brasileiros. Os explora por um salário ridículo se comparado a Estados Unidos, Europa, México, etc. O agronegócio é a nova forma de o capitalismo controlar a produção. Não tem mais espaço para a agricultura familiar e camponesa, eles não precisam mais de nós, eles conseguem aumentar a produção de leite, soja, etc, sem os camponeses. Estes, têm como opção ir para as grandes cidades ou aceitar políticas de compensação social recomendadas pelo Banco Mundial, como bolsa-família, bolsa-gás, bolsa-frango, etc. Isso fere a dignidade dos camponeses. É como se dissessem: os camponeses estão excluídos, mas não os vamos deixar morrer de fome.

Singer - Os alimentos começaram a subir em 2006. O que está acontecendo é que, em diversos países, a chamada classe c deixou de comer comida de milho e trigo para comer carne e laticínios. O consumo de carne no Brasil aumentou 70%, e o mesmo acontece hoje na Índia. Quando comemos cereais, nós comemos a planta. Quando comemos carne, consumimos as duas coisas, a carne e a planta, mas o problema é que precisamos de sete quilos de cereal para obter um de carne bovina. A demanda por alimentos subiu, e isso exige muito mais terra, sol, água e trabalho humano. As pessoas querem ter o padrão de vida que a propaganda indica como sendo o padrão dos vencedores. Há escassez de alguns alimentos, e se pergunta por quê não aumentar a produção. Deixar os alimentos escassos ao sabor do mercado é matar gente de fome. Já aconteceram motins por causa disso e outros acontecerão. Um exemplo é a revolta dos mexicanos com o aumento do preço da tortilha causado pela utilização do milho para produzir etanol. Essa crise é uma crise de fome, uma coisa que aparentemente havia sido eliminada. A ONU já fala que as Metas do Milênio para erradicar metade da fome no mundo podem voltar atrás. Se começarem a negar comida, os pobres vão ter que conseguir à unha, ou começar a saquear, como na Argentina. Recordo Celso Furtado e seus escritos clássicos sobre o mito do desenvolvimento. Se formos elevar o mundo ao padrão de consumo do americano médio, romperemos limites da natureza. Esse cenário, que Celso pintou em 1974, está se realizando em 2008.

Aquecimento global

Singer - Se nós quisermos ter uma vida mais longa e de maior qualidade, o padrão de consumo no mundo vai ter que mudar, inclusive para brasileiros, indianos e chineses. Teremos que fazer um só automóvel levar mais gente, criar bolsões de bicicleta e ciclovias, entre outras coisas. O aquecimento global deve ser contido o mais depressa possível. Todos temos algo a fazer, apesar de o aquecimento ter sido causado pelo uso irresponsável dos recursos naturais pelo grande capital. Teremos que voltar a uma dieta de cereais. Seremos condenados à fome se não mudarmos nossa forma de alimentação.

Stédile - Os problemas são tão grandes que a sociedade tem que tomar uma decisão: ou muda ou vai para o brejo. Alguns problemas ficaram mais claros e estão sendo mais bem percebidos pela sociedade. Em São Paulo, morrem no inverno 80 pessoas por semana de doenças pulmonares causadas pelos automóveis. Cientistas advertem que, se o aquecimento global aumentar mais, vai trazer um desequilíbrio na vida do planeta que pode levar inclusive a uma catástrofe do ser humano. Um grande problema é a falta de acesso à água potável para a maioria dos seres humanos. Setenta por cento da água potável do planeta é utilizada para irrigar o agronegócio e só 30% é destinada aos animais e às pessoas.

Petróleo e Biocombustíveis

Stédile - Vivemos o problema da escassez do petróleo, o preço sobe por efeito da especulação feita pelo capital financeiro que corre para comprar petróleo nas bolsas. Outro fator é que os três maiores produtores do mundo, que são Irã, Rússia e Venezuela, estão contra os EUA Uma aliança entre as empresas petroleiras, automotivas e o mercado financeiro passou a estimular a produção de agrocombustíveis, como uma falsa forma de combate à poluição, para conseguir seus objetivos de manter a margem de lucro e a utilização do veículo individual. A produção de agrocombustíveis, por si só, não é solução. Não adianta combustíveis mais saudáveis se não trocar essa matriz de transporte individual. Agora querem usar a mesma terra para produzir os agrocombustíveis. Os setores petroleiro, automotivo e do agronegócio vieram para o Brasil para produzir aqui, porque sol, água e terra não têm mais na Europa. Os capitalistas vieram com as malas cheias de dinheiro para comprar usina e terra e estimular a produção através do etanol da cana e do óleo vegetal da soja, na forma do agronegócio. Os produtores vão produzir e entregar para essas empresas levarem para o exterior. Nenhum país do mundo se desenvolveu explorando matéria-prima, e a expansão do etanol não vai significar isso para o Brasil. Estão construindo 67 novas usinas de álcool e vão passar de quatro para doze milhões de hectares de cana e etanol, que vai ser todo exportado. Se acontecer mesmo dessa forma, a expansão do etanol será um enorme prejuízo para o povo brasileiro, provocando a desnacionalização das nossas riquezas naturais. O monocultivo da cana em Ribeirão Preto alterou a temperatura, o clima e o lençol freático da cidade. O etanol feito do monocultivo da cana altera o meio ambiente e, em longo prazo, traz as mesmas conseqüências do petróleo. Quanto mais tiver adubo químico, feito de petróleo, e agrotóxicos, mais vão aumentar as emissões. O agrotóxico glifosato tem três destinos: a terra, a água ou o nosso estômago. Em São Paulo, a cana já substitui o feijão, o milho, etc. Em outros lugares, já está empurrando a pecuária para a Amazônia. Na área de óleo vegetal, não estão interessados na exportação. Justiça seja feita, o Programa Nacional de Biodiesel foi criado para dar uma alternativa à agricultura familiar. Mas, até agora o programa não cumpriu seu objetivo original, que é produzir a partir de outros tipos de plantas, como mamona, mandioca, batata-doce.

Singer - A crise dos alimentos é causada pelo preço do petróleo, que está num patamar que ninguém poderia imaginar. Pela lógica do mercado, quando um produto fica escasso e a demanda cresce é preciso aumentar a produção. Mas, a produção não está crescendo, pois isso possivelmente não convém ao capital internacional. O petróleo hoje é um limite econômico para a expansão. Países que estão crescendo muito, como China, Índia e Brasil, estão transformando boa parte de sua população pobre em classe média. A chamada classe c, nos últimos anos, teve um crescimento espetacular nesses países. O preço dos alimentos cresce muito, e isso tudo é causado pela demanda de petróleo. Tem muita queima e a produção não acompanha. O papel do capital financeiro é jogar com o aumento de preços, e já dizem que o barril de petróleo vai para 200 dólares. A especulação atual se intensifica porque também é interessante para as empresas e companhias de seguro comparem o petróleo agora, porque daqui a seis meses o preço do produto estará ainda maior.

Agricultura familiar e agroenergia

Singer – Estudos da ONU comprovam a multifuncionalidade da agricultura camponesa, da agricultura familiar. A monocultura é a principal responsável pela perda de terra e água e pela nossa incapacidade de atender à demanda por alimentos. Hoje, vemos o uso dos agrotóxicos em várias extensões, e não existe água em vários lugares de terra arável. Você não consegue fazer a monocultura sem usar muito agrotóxico. É preciso acabar com a agricultura capitalista mundial, com a monocultura, e fazer uma agricultura familiar em escala ecológica. Temos que mudar radicalmente a forma de produzir os nossos produtos. O que a humanidade está pedindo é uma nova revolução agrícola, diferente da Revolução Verde sobre a qual se basearam os conceitos do agronegócio. O passado se tornou o futuro, e hoje aqueles que detiveram os conhecimentos da agricultura ecológica são a nossa esperança. A agricultura familiar hoje é mais rentável do que a agricultura quimificada. Os insumos ficaram muitos caros por causa do preço do petróleo. A agricultura familiar é menos nociva para o meio ambiente e mais segura para os trabalhadores do que o agronegócio. Estamos numa baita crise, mas nós sabemos o caminho para sair dela. Precisamos de políticas nacionais e internacionais que regulem a forma de usar o solo e a água. Não é para outra geração, é para ontem. Os agricultores familiares são a nossa esperança.

Stédile - Temos que implementar projetos da classe trabalhadora. É possível produzirmos agrocombustíveis de uma forma mais equilibrada no meio ambiente, sem substituir os alimentos, mas também potencializando a produtividade dos alimentos. Os resíduos da produção podem ser usados como fertilizantes ou alimento para o gado. Isso só pode ser feito se o agricultor destinar apenas uma parte de suas terras para a agroenergia, e ao mesmo tempo, construir pequenas usinas. Fazer de forma cooperativada, ser dono de uma micro-usina, que pode ser feita pelas cooperativas de metalúrgicos, o que seria, inclusive, um exercício de complementaridade. Assim, podemos produzir energia sustentável, que dê mais renda e cidadania. Temos que criar em cada município pólos de produção de energia para que o agricultor familiar não dependa mais da Petrobras. Se fizermos isso em todo o Brasil, vocês vão ver que o povo vai se apoderar. Não existe independência política e econômica sem soberania alimentar. Precisamos produzir nossa própria energia.
(Carta Maior)

Alimentação: China compra fora terras que faltam dentro

Por Antoaneta Bezlova, da IPS
Ansiosa com o encarecimento dos grãos, a China estuda comprar terras de cultivo no exterior e opor-se a qualquer monopólio internacional, entre outras medidas para garantir no longo prazo a segurança alimentar de seus 1,3 bilhão de habitantes. Já se desfez a proposta da Tailândia feita no início deste mês de criar um cartel do arroz entre os países exportadores para sustentar os preços do grão, especialistas agrícolas chineses alertaram que seu país exerceria pressão contra a iniciativa. Apesar de ser o maior produtor e consumidor de arroz do mundo, a China tem escassa ingerência no mercado arrozeiro mundial. Com o fim de garantir o abastecimento interno, o país reduziu em 2007 suas exportações a apenas 1,34 milhão de toneladas. Sua produção total é de apenas 130 milhões toneladas. “As exportações chinesas de arroz representam apenas 1% de sua produção total, mas, devido ao grande volume produzido e à vasta área cultivada, nenhum país pode se dar ao luxo de ignorar a posição do país na matéria”, disse o especialista em comércio agrícola Bai Yongxia, residente em Xangai. “Se a China acredita que o preço do arroz é manipulado por meio do cartel proposto para servir a certos interesses geopolíticos, não será difícil opor-se”, acrescentou. O encarecimento do arroz, em meio a um fenômeno mundial que inclui os principais alimentos, levou países como Índia e Vietnã a reduzir suas exportações para garantir o abastecimento do mercado interno. Após o anúncio dessas restrições o preço voltou a disparar, o que representou um exemplo do efeito que poderia ter um monopólio do arroz. “Com um produto tão sensível com os grãos, se um país toma medidas protecionistas outros o seguirão”, disse o analista Zhag Xiaobo, do Instituto Internacional para a Pesqusia em Políticas Alimentares, na publicação do 21st Century Business Herald. “Isso torna realmente difícil a formação da Opep do arroz”, acrescentou Zhang se referindo à Organização de Países Exportadores de Petróleo, que, segundo seus críticos, constitui um cartel manipulador de preços. Técnicos chineses alegaram que a proposta da Tailândia de criar um monopólio junto com Birmânia, Camboja, Laos e Vietnã seria desbaratada por suas próprias limitações. “Poucos países apoiariam a proposta, porque os controles de produção e comércio seriam muito difíceis de serem implementados”, disse um especialista da Associação da Indústria de Grãos da China. “A produção arrozeira na Ásia depende de pequenas propriedades agrícolas e milhões de pequenos plantadores, e não podem ser controlados como os países da Opep controlam a produção de petróleo”, acrescentou. A China, que defende a auto-suficiência alimentar para sua vasta população e mantém um teto para os preços dos grãos, até agora saiu indeme da crise alimentar. Enquanto o preço do arroz na Tailândia – maior exportador mundial do produto – mais do que triplicou em apenas seis semanas, os preços internos na China se mantêm estáveis. O governo anunciou que em 2008 manterá a produção de grãos acima de 500 milhões de toneladas para garantir o abastecimento interno. Além disso, garantiu ao público em reiteradas ocasiões que o país tem suficientes reservas para manter os preços estáveis. Pequim também entregou US$ 4,5 milhões ao Programa Mundial de Alimentos (PMA) da Organização das Nações Unidas para ajudar a dar assistência alimentar aos pobres do mundo. Mas, apesar de reiteradas declarações de que o país está bem equipado para enfrentar a crise alimentar que envolve o mundo, o governo continua preocupado co a capacidade da China no longo prazo para dar de comer à sua população. “Agora temos menos espaço para aumentar a superfície semeada com grãos, e fica cada vez mais difícil aumentar o rendimento”, disse esta semana Nie Zhenbang, chefe da Administração Estatal de Grãos, ao jornal em inglês China Daily. Nie mencionou a redução da superfície cultivável e a escassez da água de irrigação como os principais desafios na matéria. Por outro lado, os controles governamentais sobre o preço dos alimentos e sobre os crescentes custos de produção espremeram a margem de lucro para os produtores de grãos da China, fazendo com que muitos se voltem para cultivos mais lucrativos. “Com ganhos tão pequenos e custos tão altos, há poucos incentivos para que os agricultores continuem plantando grãos”, disse Lu Xueyi, especialista agrícola da Academia Chinesa de Ciências Sociais. Para enfrentar os crescentes desafios internos na hora de garantir a auto-suficiência alimentar, Pequim está traçando uma política para incentivar as empresas agrícolas a comprarem terras de cultivo no exterior. Embora os bancos estatais e as empresas de petróleo chinesas tenham feito numerosos investimentos em outros países, fechando contratos para recursos petrolíferos e minerais, até agora houve poucos incentivos oficiais para que as companhias agrícolas chinesas se aventurem no exterior. Mas, empresas chinesas assinaram acordos agrícolas, entre eles concessões de terras em países do sudeste da Ásia e África para cultivar palma de óleo, eucalipto, milho, mandioca, cana-de-açúcar, entre outros produtos. Algumas dessas companhias foram criticadas em vários países por violarem leis, direitos humanos e meio ambiente no processo de adquirir suas concessões de terras. Países ricos em petróleo do Oriente Médio e da África setentrional já se dedicam a investir em operações agrícolas em outros países. Prevê-se que Pequim aprove o plano, apesar de também se aguardar uma contra-ofensiva internacional, disse na sexta-feira o jornal londrino Financial Times, citando uma fonte oficial chinesa não identificada.
(Envolverde/IPS)

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Conhecimento com Consciência: forma de saber viver

Está acontecendo uma mudança radical na relação entre as pessoas, na relação com o mundo. Alguns já entenderam isso; outros, entendendo ou não, estão sendo obrigados a assimilar as mudanças.
Há 300 anos um filósofo anunciou: “penso, logo existo”. E isso bastava. No século XVII, pensar era sinônimo de raciocinar.
No século XXI, pensar é uma atividade estimulada por múltiplas inteligências e dimensões humanas, não só o raciocínio. Hoje a frase é outra: “existo, e por isso penso, sinto, experimento e ainda imagino um infinito de possibilidades.” O “pensar” adotado no século XVII vingou até muito pouco tempo. Uma relação com o mundo enraizada exclusivamente na estrutura do pensamento lógico. Um jeito de lidar com a vida que parte do princípio de que é possível compreender cada aspecto da realidade separadamente, e lidar com ele de forma satisfatória. Esta postura deu origem a uma arrumação do conhecimento em disciplinas, as mesmas que se estuda na escola. E assim surgiu a separação das diferentes áreas de atuação, as diferentes profissões, que se tornaram responsáveis pela maneira como nos relacionamos com a gente mesmo, com o trabalho, filho, marido, política, esporte, e tudo mais. As disciplinas resultam de uma visão de mundo exclusivamente lógica e racional, que organiza a vida em partes para poder lidar com cada uma delas separadamente. Isso é o que hoje chamamos de fragmentação da realidade.
Todo mundo já passou pela experiência de lidar com um especialista, aquela criatura que sabe tudo sobre uma coisa só. Vá ao ortopedista, que receita um remédio para o joelho, que provoca uma gastrite, e aí você consulta um gastro, que prescreve uma medicação que dá lhe alergia. E nenhum deles consegue resolver seu problema na totalidade, nem deixar de causar outro com o qual também não sabe lidar.
É também o que ocorre a uma nação que para gerar desenvolvimento econômico promove a destruição da natureza, compromete a evolução da vida (a nossa inclusive) e nos coloca diante do atual desafio de criar um modelo de vida sustentável. Não se trata de defeito ou falta de competência. É o resultado da tal fragmentação.
Não há nenhum problema em fazer isso, contanto que não se esqueçam que depois de separar, é preciso recuperar a natural totalidade, pois a vida não acontece “em separado”. E como é que se junta tudo isso de novo? É aí que entra a importância do que se entende por “pensar” e “existir”. Se no século XVII nossa existência estava vinculada a uma relação exclusivamente racional com a vida, hoje ela tem um significado múltiplo. Trazemos em nós diferentes inteligências e múltiplas dimensões humanas, não só a racional. Todas elas produzem conhecimento e lidam com a riqueza de experiências que a vida oferece. A relação com a vida se ampliou. E como ficam as disciplinas, organizadas em diferentes áreas de atuação completamente separadas? Dessa forma, não ficam. Não há mais espaço para este tipo de visão de mundo. Por uma razão muito simples: ela não dá conta do que estamos vivendo.
No século XVII servia. Hoje, não serve mais. Temos o desejo de ultrapassar um modelo que não é de todo ruim, mas não dá conta do que temos para fazer. Desta necessidade de reintegrar, reaproximar o que foi artificialmente separado na nossa relação com o mundo, surgiram diferentes esforços. Um primeiro esforço foi a multidisciplinaridade. Como o nome já diz, são as disciplinas que se aproximam em torno de um mesmo objetivo. Os diferentes especialistas que se reúnem para oferecer, em um mesmo projeto, as diferentes contribuições das disciplinas que representam. Não são as pessoas que contribuem, são suas áreas de especialidade. Um tipo de contribuição produzido por um fragmento humano, somente pela dimensão racional que gerou o modelo das disciplinas, de forma isolada e separada.
Todos conhecem o que é uma equipe multidisciplinar: se tenho que construir uma escola, chamo o arquiteto, o engenheiro, a pedagoga, os professores, gestores, e cada um oferece sua contribuição de forma específica, a partir da sua área de conhecimento e atuação. Outro esforço para reaproximar o que o tal modelo cartesiano separou, é a interdisciplinaridade. É a tentativa de integrar métodos e conceitos de uma disciplina para outra. Veja bem, integrar métodos e conceitos produzidos pela dimensão racional.
É um esforço válido e relevante, porém ainda subordinado a uma noção de conhecimento que só contempla a lógica racional..
E aí surge a transdisciplinaridade, um esforço de reaproximação com a vida, sugerido nas últimas décadas do século XX. “Trans” significa ir além. Transdisciplinaridade significa ir além das disciplinas. Ultrapassar um modelo racional que organizou não só as disciplinas, mas também o jeito como lidamos com nosso dia-a-dia. Este modelo “trans” abre espaço para nossas múltiplas inteligências, para as diferentes dimensões humanas, do orgânico ao espiritual, passando pelo racional, emocional, social, cultural, planetário. Tudo o que em nós é também vivo e inteligente. Alargando a noção de inteligência, mudamos também o jeito de produzir conhecimento. Amplia-se a forma como vivemos, trabalhamos, nos relacionamos. Amplia-se a nossa capacidade de manter uma atitude aberta, de respeito mútuo, uma postura de reconhecimento em que não há lugar para espaços culturais privilegiados, onde seja permitido julgar e hierarquizar como mais correto ou mais verdadeiro qualquer sistema de relação com a realidade. A relação não se dá entre disciplinas, e sim entre pessoas, com tudo o que elas sabem, sentem, pensam e fazem. Não é só plugar em um pedacinho delas.
Trata-se de se relacionar com as pessoas na sua integridade inteligente que produz conhecimento. Uma ação transdisciplinar é na sua essência transcultural, contempla diferentes modos de viver e estar no mundo. Mais ainda, não se esgota em argumentos produzidos somente pela dimensão racional. Inclui emoções, sentimentos, dúvidas, imaginação, intuição, e também a experiência concreta. Numa tentativa de descrever a riqueza deste jeito de ser, podemos dizer que é uma experiência onde somos ao mesmo tempo cientistas, filósofos, artistas e místicos. Praticar a transdisciplinaridade é ser capaz de, ao mesmo tempo, explicar o mundo com a lógica de um cientista, questiona-lo com as dúvidas de um filósofo, percebe-lo com a sensibilidade intuitiva de um artista, e experimentar cada momento da vida com a profundidade de quem vive intensamente um magnífico ritual de uma grande tradição.
Arte, ciência, filosofia e tradições – este é um circuito transdisciplinar percorrido na construção da nossa trajetória no mundo. Não é só uma multiplicidade de experiências. Trata-se de acessar a multiplicidade de seres que somos, pensando, sentindo, trabalhando, lidando com a vida. É a unidade na diversidade - na prática. Descartes que me perdoe, mas esta riqueza de dimensões humanas é mais viva e real do que só raciocinar. Este jeito transdisciplinar de viver, que acolhe em pé de igualdade nossas diferentes inteligências, do orgânico ao espiritual, oferece suporte para os desafios atuais.
É a visão sistêmica do próprio conhecimento, necessária para se inventar um modo de vida um pouco melhor: mais feliz, mais harmônico, mais competente, e mais viável no planeta e no nosso dia-a-dia. Uma forma de produzir conhecimento que agrega à dimensão lógica uma boa dose de valores universais como amor, paz e não-violência. Um saber comprometido com o bem-comum, com o respeito pela diversidade inerente à natureza e à humanidade. Esta nova produção de conhecimento gera profundos impactos na realidade. O modelo adotado para o conhecimento determina um modo de vida, e vice-versa. É melhor acreditarmos logo nisso, enquanto ainda há tempo, e modificarmos rapidamente a forma como educamos a nós, aos nossos filhos e aos que nos rodeiam. Não há como transformar o mundo sem transformar a maneira como nos conhecemos, evoluímos e nos inserimos no mundo.

Regina Migliori é educadora, advogada, escritora, pioneira no Brasil em projetos de Educação e Gestão centrados em Valores, Ética e Sustentabilidade. Como Diretora Presidente do Instituto Migliori, tem realizado projetos junto a governos, empresas, e instituições de educação. Coordenou o MBA em Gestão com foco em Ética, Valores e Sustentabilidade na Fundação Getúlio Vargas. Estão entre seus clientes: Governo do Estado de Minas Gerais, UNESCO; Polícia Militar do Estado de São Paulo; Banco Real, Grupo Votorantim, Natura, entre outros; é autora de livros, CD-Rom, e programas de e-learning.