Está acontecendo uma mudança radical na relação entre as pessoas, na relação com o mundo. Alguns já entenderam isso; outros, entendendo ou não, estão sendo obrigados a assimilar as mudanças.
Há 300 anos um filósofo anunciou: “penso, logo existo”. E isso bastava. No século XVII, pensar era sinônimo de raciocinar.
No século XXI, pensar é uma atividade estimulada por múltiplas inteligências e dimensões humanas, não só o raciocínio. Hoje a frase é outra: “existo, e por isso penso, sinto, experimento e ainda imagino um infinito de possibilidades.” O “pensar” adotado no século XVII vingou até muito pouco tempo. Uma relação com o mundo enraizada exclusivamente na estrutura do pensamento lógico. Um jeito de lidar com a vida que parte do princípio de que é possível compreender cada aspecto da realidade separadamente, e lidar com ele de forma satisfatória. Esta postura deu origem a uma arrumação do conhecimento em disciplinas, as mesmas que se estuda na escola. E assim surgiu a separação das diferentes áreas de atuação, as diferentes profissões, que se tornaram responsáveis pela maneira como nos relacionamos com a gente mesmo, com o trabalho, filho, marido, política, esporte, e tudo mais. As disciplinas resultam de uma visão de mundo exclusivamente lógica e racional, que organiza a vida em partes para poder lidar com cada uma delas separadamente. Isso é o que hoje chamamos de fragmentação da realidade.
Todo mundo já passou pela experiência de lidar com um especialista, aquela criatura que sabe tudo sobre uma coisa só. Vá ao ortopedista, que receita um remédio para o joelho, que provoca uma gastrite, e aí você consulta um gastro, que prescreve uma medicação que dá lhe alergia. E nenhum deles consegue resolver seu problema na totalidade, nem deixar de causar outro com o qual também não sabe lidar.
É também o que ocorre a uma nação que para gerar desenvolvimento econômico promove a destruição da natureza, compromete a evolução da vida (a nossa inclusive) e nos coloca diante do atual desafio de criar um modelo de vida sustentável. Não se trata de defeito ou falta de competência. É o resultado da tal fragmentação.
Não há nenhum problema em fazer isso, contanto que não se esqueçam que depois de separar, é preciso recuperar a natural totalidade, pois a vida não acontece “em separado”. E como é que se junta tudo isso de novo? É aí que entra a importância do que se entende por “pensar” e “existir”. Se no século XVII nossa existência estava vinculada a uma relação exclusivamente racional com a vida, hoje ela tem um significado múltiplo. Trazemos em nós diferentes inteligências e múltiplas dimensões humanas, não só a racional. Todas elas produzem conhecimento e lidam com a riqueza de experiências que a vida oferece. A relação com a vida se ampliou. E como ficam as disciplinas, organizadas em diferentes áreas de atuação completamente separadas? Dessa forma, não ficam. Não há mais espaço para este tipo de visão de mundo. Por uma razão muito simples: ela não dá conta do que estamos vivendo.
No século XVII servia. Hoje, não serve mais. Temos o desejo de ultrapassar um modelo que não é de todo ruim, mas não dá conta do que temos para fazer. Desta necessidade de reintegrar, reaproximar o que foi artificialmente separado na nossa relação com o mundo, surgiram diferentes esforços. Um primeiro esforço foi a multidisciplinaridade. Como o nome já diz, são as disciplinas que se aproximam em torno de um mesmo objetivo. Os diferentes especialistas que se reúnem para oferecer, em um mesmo projeto, as diferentes contribuições das disciplinas que representam. Não são as pessoas que contribuem, são suas áreas de especialidade. Um tipo de contribuição produzido por um fragmento humano, somente pela dimensão racional que gerou o modelo das disciplinas, de forma isolada e separada.
Todos conhecem o que é uma equipe multidisciplinar: se tenho que construir uma escola, chamo o arquiteto, o engenheiro, a pedagoga, os professores, gestores, e cada um oferece sua contribuição de forma específica, a partir da sua área de conhecimento e atuação. Outro esforço para reaproximar o que o tal modelo cartesiano separou, é a interdisciplinaridade. É a tentativa de integrar métodos e conceitos de uma disciplina para outra. Veja bem, integrar métodos e conceitos produzidos pela dimensão racional.
É um esforço válido e relevante, porém ainda subordinado a uma noção de conhecimento que só contempla a lógica racional..
E aí surge a transdisciplinaridade, um esforço de reaproximação com a vida, sugerido nas últimas décadas do século XX. “Trans” significa ir além. Transdisciplinaridade significa ir além das disciplinas. Ultrapassar um modelo racional que organizou não só as disciplinas, mas também o jeito como lidamos com nosso dia-a-dia. Este modelo “trans” abre espaço para nossas múltiplas inteligências, para as diferentes dimensões humanas, do orgânico ao espiritual, passando pelo racional, emocional, social, cultural, planetário. Tudo o que em nós é também vivo e inteligente. Alargando a noção de inteligência, mudamos também o jeito de produzir conhecimento. Amplia-se a forma como vivemos, trabalhamos, nos relacionamos. Amplia-se a nossa capacidade de manter uma atitude aberta, de respeito mútuo, uma postura de reconhecimento em que não há lugar para espaços culturais privilegiados, onde seja permitido julgar e hierarquizar como mais correto ou mais verdadeiro qualquer sistema de relação com a realidade. A relação não se dá entre disciplinas, e sim entre pessoas, com tudo o que elas sabem, sentem, pensam e fazem. Não é só plugar em um pedacinho delas.
Trata-se de se relacionar com as pessoas na sua integridade inteligente que produz conhecimento. Uma ação transdisciplinar é na sua essência transcultural, contempla diferentes modos de viver e estar no mundo. Mais ainda, não se esgota em argumentos produzidos somente pela dimensão racional. Inclui emoções, sentimentos, dúvidas, imaginação, intuição, e também a experiência concreta. Numa tentativa de descrever a riqueza deste jeito de ser, podemos dizer que é uma experiência onde somos ao mesmo tempo cientistas, filósofos, artistas e místicos. Praticar a transdisciplinaridade é ser capaz de, ao mesmo tempo, explicar o mundo com a lógica de um cientista, questiona-lo com as dúvidas de um filósofo, percebe-lo com a sensibilidade intuitiva de um artista, e experimentar cada momento da vida com a profundidade de quem vive intensamente um magnífico ritual de uma grande tradição.
Arte, ciência, filosofia e tradições – este é um circuito transdisciplinar percorrido na construção da nossa trajetória no mundo. Não é só uma multiplicidade de experiências. Trata-se de acessar a multiplicidade de seres que somos, pensando, sentindo, trabalhando, lidando com a vida. É a unidade na diversidade - na prática. Descartes que me perdoe, mas esta riqueza de dimensões humanas é mais viva e real do que só raciocinar. Este jeito transdisciplinar de viver, que acolhe em pé de igualdade nossas diferentes inteligências, do orgânico ao espiritual, oferece suporte para os desafios atuais.
É a visão sistêmica do próprio conhecimento, necessária para se inventar um modo de vida um pouco melhor: mais feliz, mais harmônico, mais competente, e mais viável no planeta e no nosso dia-a-dia. Uma forma de produzir conhecimento que agrega à dimensão lógica uma boa dose de valores universais como amor, paz e não-violência. Um saber comprometido com o bem-comum, com o respeito pela diversidade inerente à natureza e à humanidade. Esta nova produção de conhecimento gera profundos impactos na realidade. O modelo adotado para o conhecimento determina um modo de vida, e vice-versa. É melhor acreditarmos logo nisso, enquanto ainda há tempo, e modificarmos rapidamente a forma como educamos a nós, aos nossos filhos e aos que nos rodeiam. Não há como transformar o mundo sem transformar a maneira como nos conhecemos, evoluímos e nos inserimos no mundo.
Regina Migliori é educadora, advogada, escritora, pioneira no Brasil em projetos de Educação e Gestão centrados em Valores, Ética e Sustentabilidade. Como Diretora Presidente do Instituto Migliori, tem realizado projetos junto a governos, empresas, e instituições de educação. Coordenou o MBA em Gestão com foco em Ética, Valores e Sustentabilidade na Fundação Getúlio Vargas. Estão entre seus clientes: Governo do Estado de Minas Gerais, UNESCO; Polícia Militar do Estado de São Paulo; Banco Real, Grupo Votorantim, Natura, entre outros; é autora de livros, CD-Rom, e programas de e-learning.
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