A deterioração dos termos de intercâmbio é um dos dentes da engrenagem histórica do subdesenvolvimento, fenômeno que não caracteriza uma fase do desenvolvimento, mas uma forma especifica e distorcida de inserção das economias periféricas no sistema capitalista mundial. Relações coloniais fortemente estruturadas em torno da exportação de produtos primários modelaram originalmente essa característica da maioria das economias surgidas na periferia do sistema internacional. No século XXI, algumas delas exibem uma margem de maior controle graças à expansão da base industrial em evolução. Algumas exceções apenas reafirmam a regra latino-americana e caribenha pela qual predominam padrões internos de difusão da riqueza majoritariamente circunscritos a núcleos exportadores minerais ou agrícolas. Trata-se de um corolário de concentração de renda em sistemas produtivos que se mantêm vinculados ao humor variável do comércio mundial de matérias-primas. A trajetória da América Latina e do Caribe está marcada por ciclos tão intensos quanto efêmeros, com aqueles da prata, do ouro, do açúcar e do café, para citar alguns exemplos do passado, ao lado dos atuais da soja, do minério de ferro e do cobre. A natureza cíclica é o fio condutor que os persegue, deixando em evidência a persistência de padrões de intercâmbio que transferem ao exterior as capacidades de tomar decisões relativas ao desenvolvimento. A repetição das perdas resultantes desse padrão comercial foi analisada originalmente na década de 50, no inicio da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), pelo argentino Raúl Prebish, e posteriormente estudadas pelo brasileiro Celso Furtado, que explicou detalhadamente as limitações estruturais reproduzidas por esse modelo que perpetua condições de subordinação econômica e política ao longo da historia latino-americana e caribenha. Nos últimos cinco anos, a explosão dos preços das matérias-primas abriu uma tendência à alta em um dos dentes dessa engrenagem, mas, ainda insuficiente para alterar a lógica do conjunto dado a conhecer por Celso Furtado. Desde 2003, segundo o índice do Commodity Research Bureau (CRB), a média dos preços de 24 produtos primários agrícolas registrou alta de 50% de suas cotações mundiais. Mas, ao ampliar o campo de observação a um intervalo maior, entre 1974 e 2004, a revista The Economist constatou um retrocesso acumulado de 75% para esses produtos. Ou seja, apenas uma parte das perdas foi recuperada. É importante avaliar ano a ano os fatores que impulsionaram a alta recente dos preços, de modo que se possa separar aqueles de natureza estrutural e outros de cunho especulativo. Nesse exercício podemos identificar três momentos distintos. Entre 20002 e 2004 houve aumento no consumo de alimentos com maior valor protéico – principalmente carne e lácteos – por parte de populações pobres em países em desenvolvimento, entre eles, Brasil, China e Índia. Praticamente no mesmo momento, os Estados Unidos aumentaram, de forma explosiva, sua previsão de consumo de etanol, influenciando, assim, a demanda pelo milho. Se esse período foi marcado pelo crescimento da demanda, o seguinte refletiu cerca escassez na oferta. Entre 2004 e 2006 ocorreram significativas perdas na produção mundial de cereais devido a fenômenos climáticos, como secas na China e na Austrália e furacões na América Central e no Caribe. Isso comprimiu as reservas mundiais de cereais em um momento de crescimento do consumo. A partir de 2007 é basicamente o componente especulativo que influi na alta continuada dos preços: enfrentados com as incertezas econômicas, muitos investimentos buscaram refúgio rentável nos fundos de commodities – agrícolas e não-agrícolas. Portanto, dois elementos caracterizam o atual ciclo de flutuação de preços: o peso do componente financeiro e a natureza inédita de uma demanda que resulta da expansão de consumo em países pobres. A primeira característica é transitória, enquanto a segunda pode resultar em uma mudança estrutural no fluxo e na intensidade do comércio dos alimentos e das matérias-primas. São dinâmicas em curso, mas algumas lições já podem ser extraídas desses movimentos. A primeira reafirma os riscos implícitos na dependência das exportações de bens primários, com já advertiam Prebisch e Celso Furtado há décadas. A segunda destaca a necessidade de contrapesos de política econômica para ampliar o leque de produtores beneficiados por ciclos de aumento da demanda por alimentos. O fortalecimento dos pequenos agricultores e de assentamentos organizados em cooperativas, por exemplo, ampliaria o circuito da riqueza proporcionando maior possibilidade de crescimento sustentável. Nesse sentido, é oportuno recordar que a metade dos mais de 70 milhões de indigentes da América Latina e do Caribe, vivem em áreas rurais. Para eles, a alta dos preços é uma oportunidade de superar a pobreza, sempre que, além das tradicionais políticas de crédito e assistência técnica, tenham garantiras de mercado para seus produtos. Isso pode ser feito, por exemplo, através da compra pelo governo de sua produção para formar reservas e para merenda escolar. O balanço preliminar da atual crise recomenda uma autocrítica das teses neomalthusianas que atribuíram à agroenergia a principal responsabilidade pelos saltos nas cotações das commodities, dessa forma minimizando o componente fortemente especulativo – reconhecido agora pelo próprio governo norte-americano ao propor uma ação conjunta da Commodity Futures Trading Commission (que fiscaliza os mercados futuros desses produtos) com a Security Exchange Commission (que regulamenta os ativos financeiros). A agroenergia, ao contrário, emerge da atual crise financeira como um porto seguro de consistência real e continuidade estratégica. Por mais que a demanda mundial por commodities diminua no curto prazo, o desafio de reconstruir a matriz energética do século XXI está apenas começando. A agroenergia pode ajudar a sustentar a expansão dos países pobres inaugurando uma nova dinâmica de independência comercial – com a industrialização das plantações para a produção de combustíveis e assim criar pontes entre a agricultura familiar e um setor de ponta da economia mundial que veio para ficar.
* José Graziano da Silva é representante regional da FAO para a América Latina e o Caribe.
(Carta Maior)
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