sexta-feira, 16 de maio de 2008

Nada mais socioambiental que a pobreza

Por José Eli da Veiga em 13/05/2008
Fonte: Valor Econômico
O modo mais comum de acompanhar a evolução do número de pobres baseia-se na crença de que pobreza é insuficiência de renda monetária. Atenuante talvez seja a regra dos 25 países da União Européia, de considerar pobre quem obtém ganho inferior a 60% da renda mediana nacional. Bem melhor que a insistência norte-americana de ter montante absoluto como "linha" da pobreza. Mas que só é versão menos rígida da mesma crença.
Pois bem, entrou em crise mesmo essa abordagem européia do que já é chamado de "pobreza monetária", qualificação para explicitar que capta apenas um dos determinantes da pobreza. E não poderia haver melhor exemplo que o debate desencadeado na França devido ao empenho de seu presidente, Nicolas Sarkozy, em cortar um terço da pobreza até 2012. Os diálogos entre os atores sociais mais afetados e a equipe de Martin Hirsch, titular do "alto comissariado para as solidariedades ativas", já engendrou importante acordo pela adoção de amplo "painel de navegação" ("Le Monde", 08/05/2008, p.8).
Composto de 15 indicadores principais e 18 complementares - que abrangem aspectos fundamentais da habitação, do emprego, da educação e da saúde - tal painel permitirá que a cada outono seja feita avaliação circunstanciada da evolução da pobreza. Sem prejuízo, é claro, de que seja mantida a cobrança política da temerária meta presidencial: que o número de habitantes com renda monetária inferior a 60% da mediana (? 817 euros mensais em 2005) caia em cinco anos de 7,1 para 4,7 milhões (de 12,1% para 8% da população).
De maneira alguma poderia ter sido semelhante a abordagem do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em sua missão de monitorar a pobreza em todos os países membros da ONU. Não apenas porque a grande maioria sequer dispõe de informações estatísticas que hoje são consideradas elementares até em países emergentes. Também devido à preferência pela busca de um caminho que evite tanto a miopia imposta por uma raquítica linha de "pobreza monetária", quanto a hipermetropia fatalmente criada por um obeso "painel" com dezenas de indicadores.
Além das três dimensões-chave assumidas pelo Pnud desde 1990 - "conhecimento", "vida longa e saudável" e "decente padrão de vida" - o Indicador de Pobreza Humana para países de alto desenvolvimento (IPH-2) envolve uma quarta, a "exclusão social". Quatro dimensões avaliadas por quatro variáveis: porcentagem de analfabetos funcionais adultos, probabilidade ao nascer de não se passar dos 60 anos, pobreza monetária e taxa de desemprego de longo prazo.
Não faz sentido monitorar a pobreza sem uma perspectiva que seja simultaneamente ambiental, evitando a miopia da "pobreza monetária"
Para todos os demais países, o Pnud usa o IPH-1, versão "pé-de-boi" do mesmo indicador. Além de só ter as tradicionais três dimensões, a do conhecimento é captada pela taxa de alfabetização, a da longevidade por parâmetro de 40 anos em vez de 60 e a do nível de vida por dupla variável: porcentagem da população com acesso à água potável e porcentagem de crianças com peso inferior ao padrão.
Também acaba de ser lançado um indicador muito mais ambicioso, cujo objetivo é exprimir os vínculos umbilicais que essa abordagem tridimensional mantém com sua raiz ambiental em cinco dimensões: água, solo, biodiversidade, energia e ar. E essa primeira resposta a tão gigantesco desafio revela grande disparidade entre níveis de pobreza se medidos pelo IPH-1 ou por esse novo indicador provisoriamente chamado "P&E indicator".
Para nove países as diferenças são irrisórias: Chile, Argentina, Costa Rica, Cuba, México, Equador, Síria, Gâmbia e Zimbábue. Entretanto, para todos os demais são muito significativas as discrepâncias entre avaliação socioambiental e tão-somente social. Os casos mais chocantes são os da Nicarágua e de Honduras, países muito bem classificados pelo IPH-1 (34ª e 31ª posições), mas na lanterninha no ranking do "P&E" (140ª e 131ª). O Brasil também sai rebaixado, mas nem tanto: de 18º pelo IPH-1 para 52º pelo novo indicador. E não passam de quatro - e todos africanos - os países para os quais ocorre o inverso. Houve espetaculares upgrades em Botswana (de 80º a 9º), África do Sul (de 43º a 13º), Namíbia (de 46º a 18º), e Gabão (de 41º a 24º).
Este novo índice para medir um fenômeno que pode ser bem melhor caracterizado pela expressão "pobreza socioambiental" resultou de decisivo amadurecimento da cooperação entre o Pnud e seu irmão Pnuma, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Em ambos cresceu muito a convicção de que não haverá sucesso no combate à pobreza se for subestimada a importância de sua base natural ou ecológica. Como a degradação de muitos ecossistemas, só pode aumentar a fome, exacerbar doenças ou tirar crianças das escolas, e não faz qualquer sentido monitorar a pobreza sem uma perspectiva que seja simultaneamente ambiental. Daí ser impossível que se exagere nos elogios ao estudo "Poverty & Environment Indicators" (www.st-edmunds.cam.ac.uk/vhi/csc/research/), preparado para essa parceria Pnud-Pnuma por uma equipe internacional de economistas coordenada pelo brasileiro Flavio Comim (UFRGS e Universidade de Cambridge).
Claro, caberá à comunidade constituída pelos pesquisadores em Ciências Humanas avaliar a consistência desse trabalho sob os prismas teórico e metodológico, estágio preliminar do penoso processo de legitimação ao qual necessariamente se submete qualquer proposta de novo índice. E este não é o melhor espaço para que tais questões sejam abordadas.
No entanto, leitor atento deste jornal talvez lembre que resenha publicada pelo último caderno "Eu&Investimento" (8/5) trouxe um alerta sobre a impossibilidade estatística de se exprimir em uma única fórmula sintética tanto a sustentabilidade do processo socioeconômico quanto o grau de qualidade de vida que dele decorre. Por isso, é imprescindível deixar claro que este novo indicador de pobreza socioambiental ("P&E indicator") foca tão somente uma das principais faces da qualidade de vida, sem ter qualquer pretensão de também servir para avaliar a sustentabilidade do processo socioeconômico que a está gerando.
José Eli da Veiga , professor titular do depatamento de economia da FEA-USP e pesquisador associado do "Capability & Sustainability Centre" da Universidade de Cambridge, com apoio da Fapesp, escreve mensalmente às terças. Página web: www.zeeli.pro.br

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