Márcia Pimenta*
Em 2005 a concessão da Licença de Operação (LO) para a Usina Hidrelétrica Barra Grande, do Consórcio BAESA, colocou em evidência como interesses econômicos prevalecem sobre os interesses da sociedade. Apoiado em um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) fraudulento, o IBAMA concedeu a LO para um empreendimento que inundaria uma área de 4.236 hectares composta por florestas em ótimo estado de conservação, sendo que metade dessa área formada pelas últimas áreas primárias de araucária em todo o Brasil. Além disso, os pesquisadores também encontraram no local as últimas 3 populações de uma espécie endêmica de bromélia, a Dyckia distachia, que pode ter sido extinta, em seu meio natural, devido a UHE Barra Grande.
O relatório da empresa de consultoria Engevix, contratada pela BAESA para elaborar o EIA/Rima (relatório de impacto ambiental) afirmava que a formação dominante na área a ser inundada pelo empreendimento era de capoeirões. A detecção da fraude não foi o suficiente para anular o EIA e o processo de licenciamento. A justiça avaliou o episódio como “fato consumado” já que o muro da barragem já havia sido construído, e validou um crime ambiental irreparável!
“Águas passadas não movem moinhos” diz o ditado, mas legalizar um crime ambiental, além de ser um péssimo exemplo vindo de instituições que deveriam salvaguardar os interesses da sociedade, permite que a empresa agora dentro da legalidade avance em direção ao pedido dos créditos de carbono, através do Projeto MDL BAESA. O alerta foi dado pelo Fórum das ONG´s e Movimentos Sociais para Meio Ambiente e Desenvolvimento (FBOMS) que disparou em outubro de 2008 um comunicado onde rejeitava a UHE Barra Grande como Projeto do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) e apresentava suas motivações. O FBOMS faz parte de uma lista de atores envolvidos, interessados e/ou afetados pelas atividades de projeto que recebem cartas-convite a comentários. Os comentários feitos deverão ser levados em consideração pelos empreendedores do projeto e também serão anexados ao Documento de Concepção do Projeto (DCP), que será analisado pela Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima (CIMGC), aprovando-o ou não.
As críticas referem-se ao desrespeito aos princípios básicos do MDL, já que qualquer projeto, para ser qualificado como MDL, deve satisfazer os critérios de elegibilidade estabelecidos pelo Protocolo de Quioto; promoção do desenvolvimento sustentável e comprovação da adicionalidade do projeto, ou seja, que as reduções de emissões sejam adicionais às que ocorreriam na ausência do projeto.
O argumento inicial do FBOMS faz coro com o discurso de estudiosos como Philip Fearnside especialista em Clima e Florestas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - INPA, que afirma que as hidrelétricas no Brasil são fábricas de metano. O metano é um gás com potencial de aquecimento 21 vezes maior do que o CO2 e assim as hidrelétricas no Brasil emitiriam, em média, 4 vezes mais gases de efeito estufa do que as termelétricas a combustíveis fósseis. O metano é gerado pela vegetação que ficou submersa pelo lago represado da hidrelétrica.
Segundo o biólogo e mestre em botânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Paulo Brack, existem outros cálculos que questionam as hidrelétricas como fontes de energia limpa e se fundamenta na floresta como sumidouro de carbono. Assim, além da emissão de metano pela floresta alagada estaria a perda de massa florestal que faz naturalmente a absorção de carbono da atmosfera. Como explica Brack, um estudo encomendado pela BAESA à FUNCATE - Fundação de Ciência, Aplicações e Tecnologia Espaciais - atesta que entre Florestas Primárias Florestas Secundária em Estado Avançado e Florestas Secundárias em Estado Médio de Regeneração foram alagados um total de 5.728,89 ha. Os dois relatórios da FUNCATE apresentam diferenças no número de árvores contidas em cada ha, mas considerando o número mais conservador existiriam 721 árvores /ha. Logo, 4,131 milhões de árvores teriam perecido com a hidrelétrica.
Se confrontada com a fraude comprovada do EIA apresentado ao IBAMA a proposta da atividade de projeto UHE Barra Grande parece uma peça de ficção! Uma análise à luz do histórico do processo de licenciamento, marcado por uma série de batalhas jurídicas por parte dos movimentos socioambientais, derrubará várias meias verdades contidas no texto do DCP disponibilizado na internet. Escolhi algumas.
A empresa orgulhosamente afirma que “comprovou-se com a construção do Projeto BAESA que é possível conjugar desenvolvimento socioeconômico com preservação ambiental” omitindo totalmente o fato de que se o EIA houvesse apresentado a configuração real da área a ser alagada o projeto jamais teria sido licenciado. Também assume que “contribui para o desenvolvimento sustentável dos municípios abrangidos e do país à medida que proporciona o desenvolvimento econômico da região, sem comprometer as gerações futuras, atendendo ao conceito de Desenvolvimento Sustentável”. Ora, isso não é verdade, uma vez que a área alagada era de mais de 2 mil hectares de Mata Atlântica Primária declarada na Constituição Federal de 1988 (art.225, §4º) como Patrimônio Nacional. Isso, certamente, significa que o legislador constituinte, reconhecendo a importância desse bioma quis que ele tivesse uma proteção especial.
Para atestar sua suposta contribuição para o desenvolvimento sustentável a empresa diz que mantém vários projetos direcionados para a área socioambiental e na verdade estes projetos são condicionantes de sua LO, uma vez que um Termo de Compromisso foi assinado pela BAESA como uma compensação por ter cometido um impacto ambiental de grande dimensão. Diz ela que “dentre os projetos ambientais, pode ser destacado o programa de reflorestamento que tem como meta o plantio de um milhão de mudas até o ano de 2013″ Como salientou o Professor Brack mais de 4 milhões de árvores foram afogadas pelo lago e, sendo assim, o plantio de 1 milhão de mudas mostra-se insuficiente para compensar o dano ambiental.
Em outro momento do DCP a empresa elenca as condicionantes apresentadas na LO e vangloria-se: “Como se vê as ações exigidas pelo órgão licenciador ambiental referem-se fundamentalmente à continuidade dos programas e metodologias de mitigação do impacto ambiental que foram e estão sendo desenvolvidos na implantação do Projeto BAESA, comprovando a qualidade e seriedade da empresa quanto às questões ambientais”. Mais uma tentativa de levar o analista do projeto a um equívoco, já que uma inspeção judicial relativa à Ação Civil Pública movida pela Rede de ONGs da Mata Atlântica e Federação das Entidades Ecologistas de Santa Catarina (FEEC), constatou que “nas ações de mitigação dos impactos ambientais a situação é considerada mais precária. A própria LO 447, expedida em 04/04/05 com validade de 12 meses, não foi renovada pelo IBAMA. Segundo o IBAMA a renovação não ocorreu porque algumas condicionantes da LO não haviam sido atendidas.” A renovação só aconteceu em 14/01/2008. Conclui-se, portanto que as condicionantes expressas na renovação da LO dizem respeito à continuação dos projetos já que os benefícios e resultados previstos ainda não foram alcançados.
Eloir Denílson Soares integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB alega que na questão social a fraude não foi diferente já que o levantamento da ENGEVIX admitia que 820 famílias haviam sido atingidas pelo empreendimento, mas que na verdade foram mais de 1600. Quanto aos acordos, boa parte deles, assinados com o MAB na presença de procuradores federais e do IBAMA, não foi cumprida, segundo Eloir. Neste sentido a inspeção judicial realizada alega que “entre os diversos itens do Acordo Social, alguns deles não foram cumpridos ou apenas parcialmente, como é o caso da construção de equipamentos para uso coletivo como igrejas, centros comunitários”, autenticando o que foi dito pelo Eloir.
No que se refere à adicionalidade o argumento não se sustenta, uma vez que a hidroeletricidade é prática comum no Brasil e segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), responde por mais de 70% da capacidade geradora do país. Além disso, a Licença Ambiental Prévia da Usina foi originalmente emitida no ano de 1999 e a Licença de Instalação em 2001 e nesta época não havia conhecimento sobre o futuro do Protocolo de Quioto e dos seus mecanismos de flexibilização. Assim, lastrear uma decisão de investimento tão importante aos créditos de carbono parece temeroso e não seria uma atitude sensata.
A BAESA justifica a adicionalidade de seu projeto colocando-o como alternativa a geração de energia por termelétricas, comuns no Sul do país devido à oferta de carvão mineral abundante na área, como se só existissem estas duas opções. Mas o discurso está bem alinhado com o do governo, que não consegue emplacar suas mega-construções por questionamentos jurídicos de ordem socioambiental e avança na construção de novas termelétricas, catapultando o Brasil para a retaguarda do movimento mundial que vem investindo na descarbonização de sua matriz energética.
Além disso, toda esta discussão não pode deixar de abordar a real necessidade de o Brasil aumentar sua oferta de energia à custa de impactos socioambientais irreversíveis. É bom lembrar que investimentos em eficiência energética e em energias renováveis não-convencionais, como solar térmica, eólica e biomassa, são uma boa maneira de diminuir as emissões de gases de efeito estufa de forma sustentável.
Finalizando, proponho uma reflexão: será possível uma empresa que apresentou um documento fraudulento para concretizar um empreendimento que acarretou em um impacto ambiental irreversível evocar agora a preocupação ambiental, para arrecadar créditos de carbono que poderiam ser direcionados para iniciativas de fontes energéticas comprovadamente sustentáveis? Se o projeto for realmente submetido, espera-se que essa questão seja levada em consideração.
* A autora é jornalista
(Envolverde/O autor)
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