Naná Prado, Leticia Freire e José Maurício de Oliveira, do Mercado Ético
Edição: Fabiano Vidal
Mulheres trabalham desde que o mundo é mundo. Trabalho invisível e não-remunerado no que hoje chamamos de economia do cuidar. Trabalho extenuante nos campos e nas fábricas, para complementar o orçamento doméstico.
Costumamos esquecer esse fato histórico e cultural quando nos referimos a um fenômeno recente, que ganhou intensidade nas últimas décadas: a conquista do direito ao exercício de profissões que envolvem liderança, gestão e o domínio de corpos estruturados de conhecimento.
Conquista, sim. Fruto de batalhas intensas pela igualdade de oportunidades entre os gêneros, não apenas no mundo do trabalho, mas no conjunto das relações sociais. Processo que está longe de se esgotar, tal a quantidade de assimetrias ainda vigentes. Mas que temos de reconhecer obrigatoriamente como um avanço a ser celebrado na direção de sociedades mais fraternas e solidárias.
As perguntas que raramente fazemos são: como se sentem as protagonistas dessa conquista histórica? Como vivem esse processo em que as cartas socioculturais são reembaralhadas e redistribuídas? Como lidam com as novas demandas e conflitos gerados nessa travessia ainda inconclusa, em que o velho já não comanda mas o novo ainda não o é por inteiro?
Mercado Ético reuniu um grupo de mulheres de gerações diferentes para conversar sobre as dores e as delícias de viver um tempo de reinvenção. O debate foi mediado por Christina Carvalho Pinto e José Maurício de Oliveira. O resultado, você confere a seguir.
Ainda sobre o tema, não deixe de ler o artigo de Antônio Andrioli, que publicamos hoje, sobre a águia que vira galinha depois que casa. É leitura obrigatória para homens e mulheres que não estão dispostos a se conformar com velhas soluções para novos problemas.
José Maurício de Oliveira: Vou começar com uma provocação. Nos últimos 50 anos, um grupo crescente de mulheres conquistou o direito de acesso ao ensino superior, o que lhes permitiu construir relações de trabalho diferentes das que vigoraram por séculos - veem-se como profissionais, projetam e gerem carreiras, não se limitam a trabalhar apenas para complementar o orçamento doméstico.
Nesse processo, acabam por se transformar em “mães de fins de semana”, como já o eram tradicionalmente seus companheiros. Delegam a socialização dos filhos, quando os têm, a babás, avós e instituições como creches e escolas.
Mães e pais movidos por sentimento de culpa em relação aos filhos costumam ser presas fáceis dos caprichos infantis. É a receita infalível para a criação de multidões de adolescentes e adultos incapazes de tolerar qualquer grau de desconforto, privação e dor. Incapazes de estabelecer mediações entre os impulsos, os desejos e os objetos em que os projetam. Adolescentes e adultos que costumamos chamar de consumistas.
Reunimos hoje aqui mulheres de várias idades que têm em comum a vivência desse conflito entre carreira profissional e socialização dos filhos. Gostaria de saber como é que vocês lidam ou lidaram com isso?
Norma Freire: Eu entendo bem o que você diz. Eu trabalhava, mas tive filhos tarde. O pai dos meninos é professor, então ele tinha um horário mais flexível. Quando as crianças nasceram, parei de trabalhar porque achei que era importante ficar com elas o máximo que eu pudesse. Parei com tudo durante o tempo que deu. Comecei a escrever história para criança, foi um período muito feliz.
Depois, voltar ao mercado de trabalho, que é competitivo e a gente sabe disso, foi complicado, mas não é impossível. Ainda assim, eu acho muito importante, pelo menos até cinco, seis anos, pai e mãe juntos, presentes na formação das crianças. Mas eu sei que meus filhos sentiram a falta dos pais em casa.
Christina Carvalho Pinto: Mas e aí, como é que faz para ser pai e mãe numa sociedade estruturada para moer o profissional?
Norma: Aí é que está. No meu caso, eu parei e passei a me dedicar a coisas que eu gosto muito: escrever, cuidar de planta, cuidar de criança. Voltar mais para a questão da vida, sabe? Que eu acho que tem muito haver com a mulher. A gente aprende como mulher, eu pelo menos aprendi muito, a ver a natureza crescer. Eu sou da cidade e fui morar numa chácara. Foi um período rico, muito rico. Acho que para o pai dos meninos também, que participou muito dessa fase.
Zé Maurício: Isso foi uma escolha?
Norma: Para mim, certamente. Essa foi minha escolha. Durou um tempo, mas foi uma escolha.
Zé Maurício: Escolha consciente?
Norma: Eu não conseguiria de outra maneira. Depois retornei ao mercado de trabalho e vi mulheres divididas ao meio.
Célia Contrucci: Esse foi o meu caso. Eu tinha dois filhos pequenos, mas não tive escolha: ou ia trabalhar, ou ia trabalhar. Fiquei viúva, era mãe e pai ao mesmo tempo. Minha mãe me ajudou muito e ontem mesmo eu comentei com ela, disse que eu adoraria ter tido oportunidade para ficar com os meninos por mais tempo, principalmente na adolescência, mas não tinha jeito. Preocupa muito criar um adolescente que você não está acompanhando. Você acha que os filhos estão bem e bonzinhos. Mas, no fundo, você não sabe: você espera que sim. E o que fazer se você precisa trabalhar.
Norma: É complicado. Mas eu vejo uma coisa (não sei se você concorda comigo, Célia): quando a mulher tem que ir para o mercado de trabalho, você não acha que os filhos vem juntos? Depois de certa fase, lá pelos 10 ou 12 anos, você não acha que eles já entendem essa necessidade?
Célia: Olha, no meu caso, até vir para São Paulo, eu os tinha mais perto e eles tinham muito mais noção do valor das coisas quando eu estava mais próxima. Já em São Paulo, a situação financeira foi ficando menos difícil e eles foram embarcando nessa.
Naná Prado: Quantos anos eles têm?
Célia: Um tem dezoito e o outro, dezessete anos. Um entrou na faculdade agora e o outro está no 3° colegial. Eu percebo que antes eles davam mais valor às coisas do que hoje. Cada um tem seu computador. Me pergunto por que cada um precisa ter o seu. Mas eles pedem…
Norma: A pressão social é grande. A sociedade pede que cada um tenha seu computador.
Christina: Ou seja, estamos retornando à pergunta provocativa do Zé Maurício. Se você junta a estrutura de um mercado com uma carga de trabalho desumana mais uma sociedade de consumo, que cria uma série de necessidades absolutamente artificiais, para manter esses desejos artificiais das pessoas que você ama, você se rende a elas e, muitas vezes, se torna mãe ou pai culpado.
Engraçado e importante comentar que, em relação à culpa, a mulher tem mais facilidade, ou espaço, para expressar seus sentimentos, de falar das suas dores. Os homens ficam mais distantes, têm mais dificuldades para isso. Ficam tão fechados que enfartam. Não agüentam essa pressão e vemos coisas como a alta incidência de alcoolismo entre executivos, por exemplo. Não que a mulher não esteja vulnerável a isso, pelo contrário. Hoje, depois dessa ruptura, ela também vive essa divisão, ficou muito vulnerável a todas essas disfunções de saúde física e psíquica.
Quer dizer, essa discussão toda retorna à provocação inicial, ou seja: numa sociedade que leva aos jovens a esse nível de consumismo, evidentemente, o motor dessa matriz é a força de trabalho. Como você tem que estar imersa nesses valores invertidos do mercado de trabalho atual, parece, pelo que eu ouço aqui, que predomina essa sensação de desconforto em relação a ser mãe e trabalhar. Não só você está em desequilíbrio como também é causador de outros desequilíbrios. Você é ativamente parte de um motor que vai gerando mais produção, mais produtos disponíveis para consumo. Então eu gostaria de saber das mulheres mais jovens presentes como é que estão vivendo isso?
A Patrícia disse que está no limite e nem fez 30 anos ainda. Para ela afeto é importante, ser mãe é importante, mas por outro lado tem sonhos e paixões profissionais também. Naná, com o dilema dela entre ter ou não filhos. Enfim, o que vocês farão com suas vidas? Vocês sabem que podem ficar partidas ao meio. Então, qual é a escolha da geração de vocês? Pergunto isso exatamente porque a minha geração teve que escolher e, em qualquer um dos lados, a divisão não ficou confortável.
Patrícia Gayle: Engraçado, meu marido perguntou isso para mim ontem. E eu não soube responder. Ele me perguntou sobre filhos, disse que estamos juntos há 10 anos e tal. Aí ele lembrou de outras coisas: “você quer fazer um MBA no segundo semestre desse ano, você chega em casa as 21h30 todo dia e eu gostaria de saber a que horas a gente vai fazer algum plano junto. E como você vai ter tempo para equacionar tudo isso?”
Zé Maurício: Mas, e ele? A que horas chega em casa?
Patrícia: Seis e meia da tarde! (risos)
Zé Maurício: A que horas ele sai?
Patrícia: Às 9h15, porque ele mora ao lado do trabalho!
Norma: Você consegue administrar seu tempo para regular mais com o dele?
Patrícia: Acho que a maior questão não é administrar melhor meu tempo. Tenho é que administrar a minha síndrome de mulher maravilha. Eu me imponho desafios muito grandes numa velocidade muito intensa. Eu sou assim, muito ligada. Então, você já trabalha 12 horas por dia, ok? Ok. Você já não conseguiu equacionar isso, ok? Ok. Já quer somar à isso um MBA, a aula de inglês e não-sei-o-que-mais. Você ainda precisa ser magra, gorda não vale. Tem que fazer dieta, ir para a academia. São muitos papeis que tem de assumir e equilibrar.
Naná: Como é sua relação com sua filha?
Patrícia: Minha filha já é grande, tem 15 anos.
Naná: Vocês se vêm todos os dias?
Patrícia: Eu a vejo muito pouco, mais no final de semana. Mas ela também está numa fase “aborrecente”. Às vezes, ela passa no meu trabalho, almoça comigo ou vai me visitar no escritório. Só que eu tenho muita dificuldade para conciliar as coisas. Tem vezes que ela passa no escritório e eu não vejo, se estou em reunião não interrompo. Preciso rever o modo como administro meu tempo. Tenho dois celulares, mais o telefone da empresa. Assumo muitas responsabilidades, não bastam apenas as minhas, pessoais.
Christina: O que você disse, Patrícia, é interessante, mas preocupante também. Recentemente, fiquei 3 meses de cama quando minha coluna “quebrou”. E eu comecei a perceber que não ia perder nada ao optar por coisas que não eram ligadas ao trabalho. Quando há uma queda no seu rendimento mensal, você descobre que pode viver com infinitamente menos do que acha que precisa. Então acho que vale à pena a gente tratar essa síndrome, saber por que a mulher trabalha tanto para receber essa premiação.
Carmem Silvia Carvalho: Parece que quando falamos sobre mulher, polarizamos entre a profissional e a mãe. Mas para mim, ser mulher está ligado a ser alguém ao lado de outra pessoa. Quando meus filhos eram pequenos, eu não gostava do meu marido. Então não tinha conflitos, porque conseguia conciliar o trabalho e os filhos. Não precisava ser mulher, só mãe e profissional.
Hoje tenho um marido que amo e ficou difícil conciliar, porque agora eu tenho que ser mulher, além de mãe e profissional.
Darlene Menconi: Permitam-me discordar de vocês. Será que eu posso escolher não ser mulher-maravilha? A sociedade pede isso da mulher. E a gente trabalha o dobro para conquistar um salário que é um terço.
Eu nunca quis ter filhos, meu negócio era trabalho. Eu conseguia ter marido e atividade intelectual, hobby. Saía, ía a todas as baladas. Conheci todos os artistas. Fiz filosofia, jornalismo. Fui casada com um cineasta. Trabalhava loucamente e fiz muitos filmes. Depois casei com um artista plástico maravilhoso, fiz teatro, fiz um monte de coisas.
Mas quando tem filhos, você é fendida naturalmente. Com meu último marido, pai da minha filha, eu passei por um divórcio litigioso horrível. Eu ainda estava amamentando e no meio da gravação de um programa de televisão. Eu, que sempre fui uma pessoa voltada ao trabalho, estava vivendo aquela situação com uma filha pequena.
Quando eu trabalhava na revista Veja, só existiam duas editoras: eu e outra mulher, que era mãe. Eu me lembro que ela não era chamada para as reuniões, porque não dava conta. Meus colegas diziam que eu tinha sido promovida a homem, o que me deixava extremamente irritada. Mas por que eles falavam isso? Porque eu era tão competitiva quanto eles.
Num período de mudança profissional da minha vida, eu tive uma filha. E aí eu descobri que mãe é mãe.
Hoje eu não posso alçar muitos vôos. Fui obrigada a olhar para todas as oportunidades e dizer que eu não posso dar conta de tudo: eu tenho uma filha pequena. Olho para Bia, aquela coisa linda, e penso que minha raiva não é dela, é da maternidade. Ou seja, para que temos filhos? Para a sociedade ou para a gente? Porque somos penalizadas? Eu não sei mais o que é namorar. Como é que eu vou namorar? Minha ligação pessoal afetiva mais forte hoje é com a minha babá, é ela que me salva. E eu penso, quando é que eu vou entrar como mulher, quando é que eu vou passear?
Num livro que li, estava escrito que você não tem como não se sentir perdida quando é mãe, porque você não é mais você.
Mas é como dizem: a maternidade é o que falta. Eu não conseguiria me imaginar um segundo sequer sem ser a mãe da Beatriz.
Norma: Eu acho muito complicada essa questão da maternidade. Eu dizia na época: vou me comportar como eu sei, porque é claro que tinha meus momentos de dizer “não quero, estou querendo outras coisas”. E entrei com meus filhos numa relação mais direta quando falei: “olha, a mãe de vocês é assim; se um dia a mamãe de vocês chegar de ponta-cabeça, a mamãe está de ponta-cabeça”. Isso, bem ou mal, vai abrindo o diálogo. Aprendi muito com meus filhos. Espero que eles tenham aprendido comigo também. Foi uma relação de ser humano para ser humano.
Darlene: Isso eu acho importante.
Norma: É. Você precisa se posicionar.
Zé Maurício (para Norma): Quando você começou a trabalhar como jornalista, quantas mulheres havia na redação?
Norma: Éramos duas numa redação de 80, 90 pessoas. Mas apesar disso, a pressão maior foi a de voltar ao mercado de trabalho depois. Você tem que voltar e batalhar. Tem que ser competitiva. No meu caso, por exemplo, eu tinha que estar na redação às duas da manhã, porque o jornal fechava às três. Eu tinha que estar lá e ponto. Se não quisesse, tinha que voltar para casa e arranjar outra coisa para fazer.
Eu quis ter filhos. Foi minha escolha, então eu disse não por um tempo e vi o que eu podia fazer de casa.
Zé Maurício: Eu fiz essa pergunta para você por um outro motivo. Em 1971, eu já era revisor do jornal O Estado de São Paulo quando entrei no Instituto de Psicologia da USP. Na faculdade, minha turma era formada por cinco homens e 65 mulheres. Aí, eu saía de lá e ia para o jornal, onde éramos 20 homens e nenhuma mulher. Um tempo depois, fui para a Folha de São Paulo, onde já havia uns 15% de mulheres na redação. E acompanhei ao longo da minha carreira a inversão dessa proporção.
Patrícia: A questão aí é o que conseguimos acumular. Acho que as mulheres acumularam funções com essa inversão. Em casa, você não pode ser outra coisa que não mulher. Outro dia, brinquei com meu marido, disse que se ele quiser ter um filho, eu quero ser o pai. E ele me perguntou: “o que é ser mãe ou ser pai para você?”.
Eu comecei a esclarecer: quando a gente for a uma festa infantil, eu vou sentar para tomar cerveja com meus amigos e você vai correr atrás das crianças o dia inteiro. Quando o bebê chorar a noite, você vai levantar porque eu tenho que levantar cedo no dia seguinte. Afinal eu estou cansada, EU trabalhei o dia inteiro.
Lá em casa eu faço tudo. Pago as contas, vou ao supermercado, levo o carro para lavar. Se a casa precisa de alguma manutenção, até isso eu preciso fazer.
Christina: Claro. É a gestão que você assumiu. Você, Patrícia. O espaço que a gente assume, assumido fica. E isso vale para a relação com o marido, com os filhos e com o trabalho, também. Você vai assumindo espaços.
Patrícia: Sim, mas é um espaço que a sociedade impõe, como já foi dito. Para você não assumir as chamadas tarefas femininas, tem que mudar a dinâmica tradicional, em que o certo é a mulher cuidar da casa, dos filhos e do marido. Existem muitos pais participativos, ninguém está falando que a mulher carrega uma cruz. Meu marido é super afetivo e participativo, ele é. Só que ele pode escolher no que quer participar, eu não.
Zé Maurício: No futebol tem um combinado segundo o qual quem se desloca tem preferência para receber um passe. Até que ponto você não está se deslocando demais e pedindo muito a bola?
Patrícia: Você tem toda a razão. Eu comecei minha fala concordando que assumo muitas responsabilidades. Mas a minha colocação diz respeito à questão dos fundamentos familiares, em que é normal a mulher fazer isso.
Norma: Eu não sei o que é normal.
Patrícia: Olha, quando um homem assume as tarefas domésticas a gente fica surpresa. As mulheres não olham para isso como se fosse a coisa mais banal do mundo. A gente aprecia e comenta:”nossa, que cara mais prendado”.
Christina: Acho que está acontecendo uma coisa fantástica aqui. Mais de 90% do nosso bate-papo gira em torno dessa divisão e da nossa ânsia enquanto seres humanos. Eu sinto que essa conversa converge para a ânsia de buscar equilíbrio entre os papeis. Cada uma de nós parece estar vivendo esses anseios de alguma forma, mas nenhuma de nós parece dizer: “eu encontrei a solução”.
Vou fazer uma provocação, que parte de uma boa notícia: o sistema implodiu. Os homens estão exaustos, deprimidos. A definição do que é sucesso para o homem se tornou muito mais pesada que o razoável para um ser humano interessante, agradável, parceiro, amante, amigo. O homem também está sufocado.
(para Patrícia) Você disse: “ele escolhe”. Não sei se ele escolhe. Existe para eles alguma outra opção que não seja se jogar no mundo, não chorar e obter sucesso? Pior: um sucesso completamente frio e artificial?
Todos nós, homens e mulheres, fomos criados e treinados para desenvolver algo que se chama carreira e seremos premiados pelo nível da escada que chegarmos nesse quesito. Mas isso implodiu: estamos todos estressados, homens e mulheres. É importante colocar os homens aqui na roda. Assim como está, não dá.
Estamos vivendo o colapso em diversos níveis e setores, mas existe algo que não sai dessa roda, que é o afeto. Tanto é que os mais jovens hoje estão decidindo viver com muito menos dinheiro, para viver melhor suas experiências pessoais, como casamento, filhos. Será que não estamos retomando a uma discussão antiga? Será que não estamos discutindo uma página virada da história?
Zé Maurício: Eu vejo o “lado b” da sua colocação. Na década de 70, muitas amigas me convenceram que a conquista do direito de acesso ao mercado pelas mulheres, em condições de igualdade, provocaria uma revolução no mundo do trabalho, impulsionada por valores “femininos”, como o afeto, a solidariedade e o espírito cooperativo, entre outros. Vendo hoje, eu percebo o oposto: mulheres que trabalham como homens e lideram com a ferocidade dos homens.
O que deu errado? E não adianta o sistema desmoronar se a reconstrução se der pelos mesmos princípios.
Norma: O que eu me pergunto se a questão central, novamente não é você se posicionar, ou seja, dizer “sim” ou “não”. E nisso você vai descobrindo, porque não existe a receita pronta. É esse vazio que está circulando aqui que a gente pode preencher com coisas boas.
Naná: Eu sempre quis ser jornalista, ser uma excelente profissional, nunca pensei em casar, ter filhos. Até o dia que eu conheci meu marido, Vinicius. Em seis meses já estávamos morando junto e nesse pequeno tempo de convivência, muita coisa mudou. Hoje já não penso mais em ser a super-isso, super-aquilo e não ser mãe. Essa história com ele me faz pensar: qual o sentido de querer tudo como profissional e nada como mulher?
Eu vi o que minha mãe passou sendo mãe e profissional ao mesmo tempo. Meus pais trabalhavam e eu fui criada pelos avós. Eu sou do Interior e quando cheguei em São Paulo pensava: como vou ter filhos aqui, sem minha família perto de mim? O Vinicius me ajudou muito a perceber outras coisas e é claro que estar num meio profissional mais “humano” ajuda muito. Hoje eu sei que se disser “estou grávida” todo mundo vai me ajudar.
Eu não vivo mais na neura de pensar: “nossa, será que se eu ficar grávida eu vou perder o emprego, vou ter que abandonar minha carreira”. Eu sentia como se houvesse uma escolha. Hoje eu vejo que não precisa ser assim, pode haver equilíbrio.
Christina: Todos, homens ou mulheres, conseguimos algo incrível: estamos todos aborrecidos com a forma como o trabalho é colocado hoje. Temos outros anseios. Queremos ser pais, mães, maridos, mulheres, amigos, companheiros. Estamos todos buscando essas outras forças afetivas, extremamente valiosas que foram sufocadas.
Darlene: Quando você é mãe, descobre que pode ser tudo, mas não precisa ser a melhor em tudo, porque você já é mãe. Você não precisa ganhar os melhores prêmios, trabalhar loucamente, porque você é mãe, mulher, amiga, profissional. Enfim, a somatória dos valores muda.
Christina: E veja você, Gaia, que é o Planeta Terra, está doente. A grande mãe está sangrando e é chegada a hora de cuidar. Ser mãe não só dos filhos que parimos, mas também mãe da História. Mãe para tecer outros caminhos mais afetivos, mais humanos. É a hora de cuidar e isso não tem genes.
Carmem: A coisa mais importante para mim são meus filhos, meu marido, meus amigos, enfim, meus afetos. E de novo eu estou trabalhando demais para conseguir coisas que não estão ligadas a eles. É importante refletir sobre isso. Quando me separei do meu primeiro marido, precisei ir à luta mesmo. Trabalhei muito e fiz muito sucesso. Mas um dia minha filha veio a mim e falou: “mãe, você está muito cansada; você precisa trabalhar tanto?”
Eu respondi perguntando se ela achava que era fácil bancar a casa, as contas etc. Ela me surpreendeu quando falou: “mas você me dá muito mais do que eu preciso; eu só preciso um pouco mais de você”.
Eu costumava dizer que estava escolhendo para eles. Mas na verdade eu escolhia por eles. E o que era pior, sem consultá-los.
Naná: Mas você não consegue conciliar as coisas?
Carmem: No momento está difícil.
Naná: Porque eu espero poder ter filhos logo, mas não ficar alucinada com o trabalho. Eu quero continuar trabalhando, mas eu quero estar com eles.
Carmem: Eu nunca parei profissionalmente, só fui devagar. Meus filhos pediam mais tempo que o trabalho. Só depois da separação as coisas mudaram.
Patrícia: Aí que está! É do ser humano. Eu não me sinto tão cobrada pelos outros. O problema sou eu com as minhas escolhas. Quem se cobra acordar às 6 da manhã sou eu e trabalhar até 21h30 sou eu. Não há chicote algum atrás de mim me obrigando a isso, entende?
Carmem: Isso me lembra uma poesia de Drummond que se chama “O homem e a viagem”. Diz mais ou menos assim: o homem conquistou a terra e conquistada não tinha mais graça. Daí o homem conquista Marte, a Lua, chega aos confins do Universo. E na última estrofe, Drummond diz: chegou a hora do homem empreender a “dangerosíssima” viagem. Conseguirá ele conquistar o homem, civilizar o homem e fazer o homem entender a arte de conviver?.
Eu acho que essa é a viagem. Está na hora de revisar as prioridades e conquistar o próprio homem.
Darlene: Pois é. Eu tinha outros valores e ambições, mas a vida me fez repensar o custo disso tudo. Me fez perguntar mais sobre as coisas que eu quero ou não.
Naná: Isso é o que penso. Eu quero trabalhar, mas também quero me dar tempo para ter filhos, para ver minha mãe, enfim, quero mais equilíbrio. Quero viver mais minha vida, que não é só trabalho.
Christina: Por isso eu tenho certeza que essa conversa é o reflexo da mudança de um paradigma.
Carmem: Aqui todas de alguma forma vivemos um conflito por ter vivido intensamente a vida profissional. Você, Christina, não tem esse conflito? O fato de sua escolha ter sido pelos filhos gerou conflitos?
Christina Recoder: Minhas opções estão no passado. Eu não fico me remoendo com isso. Eu fiz as escolhas que eu achei certa na hora e me mantenho com elas hoje. Eu não fico procurando coisas no passado. Eu procuro eliminar a culpa, ou seja, eu vejo o que deu certo e não o que deu errado. O que foi gratificante para mim. Na época eu não precisei, como muitas de vocês, ir à luta. Se eu tivesse precisado na mesma proporção teria sido diferente. Eu tive essa opção.
Norma: Sim, isso é importante. Quando se olha o espaço que foi ocupado por algum vazio, seja dos filhos fora de casa, seja pelo tempo perdido devido o excesso de trabalho, é importante olhar outras coisas para preencher esse espaço e não agregar culpa a ele.
Christina Recoder: Pois é, eu fiz a opção que eu achei que tinha de fazer na época. Eu não abri mão de nada, eu vivi para meus filhos, essa foi a minha opção. Agora que eles estão encaminhados eu sinto necessidade de fazer outras coisas. Acho que tudo que eu aprendi precisa ser jogado para outra coisa. Eu sei pintar, desenhar, então eu fui devagar trilhando meu caminho. Eu não me anulei, sabe? Eu sempre fiz coisas e sempre me envolvi muito nas coisas que eu fazia, mas eu tinha outras prioridades.
Carmem: Na fala de cada uma de nós existe a idéia de escolha, certo? Por isso temos a ânsia de controlar o tempo. Isso me lembra uma conversa que tive com um professor. Ele disse que estava lendo um livro de um filósofo para quem o tempo era, na verdade, nosso grande libertador. Eu fiquei pensativa, afinal, o tempo era meu grande escravizador e a vida todo eu tive a sensação que não tive tempo! Mas ele me disse: se não houvesse o tempo, haveria a eternidade e se houvesse a eternidade não seria preciso escolher.
Exatamente por conta da escolha, você é obrigado a parar para pensar, priorizar, buscar a essência. Você é obrigado a se conscientizar das suas vozes interiores. Portanto a grande a liberdade, o grande desenvolvimento do homem é que não cabe ser tudo. E são nas escolhas que crescemos. Sociedade, mulher, homem, enfim, eu fico pensando se o que está por trás de tudo isso não é a escolha. A escolha de cada um. Existe pressão de todos os lugares e canais. Mas nós escolhemos. Eu não renuncio meu direito de escolha, então, eu nunca culpo ninguém por nada.
Norma: Será que as mulheres aprenderam a assumir isso?
Carmem: Eu acho que assumimos pela metade, não como mulheres, mas como seres humanos. Quando nasceu meu primeiro filho, ainda na maternidade minha mãe veio falar comigo. Ela disse:”Filha você está começando uma nova fase na sua vida e como eu não quero me meter vou te dar um único conselho agora. Meu conselho para você é: sim é sim, não é não.”
Muitos anos depois, no Dia das Mães, eu escrevi numa carta para ela que, muitas vezes, apesar de achar que ela estava absolutamente certa, eu não tinha conseguido seguir esse conselho. Porque minha mãe, quando ela dizia sim ou não, tinha certeza. Eu revia tanto as coisas e o mundo tinha tantos possíveis que eu tinha dito milhares de vezes não-sim e sim-não. Eu acho que é esse o grande conflito.
Norma: Outro dia me peguei pensando se eu conseguiria gostar novamente de alguém. E eu me peguei chorando, ou seja, a vida te devolve esses nãos e esses sins, para que seja possível reaprender com as escolhas. E essas escolhas, eu sinto, estão indo para um caminho de simplicidade. Até porque o jogo está tão complexo, que é você acaba tendo que observar as coisas novamente.
Carmem: Tanto é que eu nunca fiz minhas opções evitando o sofrimento. A dor é inevitável, não adianta escolher por não sofrer, você vai sofrer em dobro, entende? Minhas escolhas, meus nãos ou sins não foram feitos para evitar a dor, mas para me conduzir a coisas melhores, entende? É difícil.
Christina: Essa questão, “será que eu consigo sentir novamente”, é importante e acredito que seja uma grande mensagem para ser deixada nesse nosso encontro. Falamos tanto de maternidade, afeto, escolha, conflito. Nós não falamos sobre a conjuntura econômica, nossas próximas decisões, enfim, falamos sobre sentimentos e sobre a necessidade de rever nossos sentimentos. Tanto homens quanto mulheres querem mais flexibilidade nas relações de trabalho, exatamente porque os valores firmados para esse meio estão implodindo. Acredito que só o silêncio pode nos devolver a nós mesmos.
Carmem: Para compreender a dangerosíssima viagem do conviver…
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