Maurício Hashizume*
Não é preciso ser especialista para reconhecer a relação direta entre o ritmo da economia e a geração de empregos. Ainda está bem viva na memória dos brasileiros a dura recessão da década de 80, que perdurou durante grande parte dos anos 90 e afastou muita gente do mercado de trabalho.
Nos últimos anos, a retomada do crescimento econômico ajudou a criar um ambiente mais favorável para quem está disposto a batalhar por um posto de trabalho. Em pleno mês de agosto, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) registrou a criação de mais de 1,8 milhão de novas vagas preenchidas no país, superando a meta que o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) estabelecera para todo o ano de 2008. Nos primeiros oito meses de 2007, o mesmo índice ficou em 1,3 milhão de empregos. O recorde anterior, do ano de 2004, era de 1,4 milhão.
Pela primeira vez, o saldo de empregos em 12 meses (agosto de 2007 a agosto de 2008) ultrapassou a marca dos dois milhões de postos formais. As estatísticas das contratações mostram também uma elevação dos níveis de emprego em diversos setores e em várias regiões do país.
“O principal destaque nos dados divulgados para o ano foi a taxa de desemprego metropolitana, que passou de um patamar de 9,9% na média do primeiro semestre de 2007 para 8,3% na média do mesmo período de 2008, o que equivale a uma diminuição de 1,6 ponto percentual (p.p.) no período”, destaca o último Boletim de Conjuntura sobre Mercado de Trabalho do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), divulgado em agosto.
O percentual de pessoas no trabalho formal atingiu 49% do total dos ocupados, segundo dados do 1º quadrimestre de 2008 da Pesquisa Mensal de Emprego (PME) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Trata-se da maior porcentagem de formalização desde que a metodologia foi adotada.
Diante de tantos resultados positivos, o relatório Emprego, Desenvolvimento Humano e Trabalho Decente: A Experiência Brasileira Recente, resultado de um esforço conjunto da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), traz alertas e análises que destacam um outro lado menos exuberante: o déficit “social” do trabalho.
Lançado em setembro, o estudo reconhece o crescimento econômico como um fator determinante para o combate à pobreza e às desigualdades sociais, mas não deixa de apontar limitações relevantes. Nesse sentido, posiciona os quatro pilares da agenda do trabalho decente (criação de emprego de qualidade para homens e mulheres, extensão da proteção social, promoção e fortalecimento do diálogo social e respeito aos princípios e direitos fundamentais no trabalho) como elos entre as condições favoráveis da economia e melhorias concretas no índice de desenvolvimento humano (IDH).
“É muito bom que haja crescimento econômico, mas ele não pode ser selvagem. O trabalho decente busca conciliar a idéia de produtividade com justiça social”, explica Laís Abramo, diretora do escritório da OIT no Brasil. “Em 2006, a análise das Américas feita pela OIT identificou um déficit de trabalho formal de 53% da População Economicamente Ativa (PEA). Isso corresponde a 126 milhões de pessoas. Desse total, 103 milhões estão submetidos a trabalhos informais e 23 milhões estão desempregados ou migraram para outras regiões”, contextualiza.
A partir da evolução recente do mercado de trabalho no Brasil, o trabalho assinado pelos três organismos ligados à Organização das Nações Unidas (ONU) confirma as melhorias verificadas no mercado de trabalho entre 1990 e 2005. Além da relação favorável entre o incremento do Produto Interno Bruto (PIB) e a geração de empregos, houve aumento do nível de ocupação e da formalização, leve melhoria nos rendimentos do trabalho e maior valorização da escolaridade na hora da contratação.
Por meio da avaliação de 28 indicadores coletados entre 1992 a 2006, os autores identificaram um processo de reversão da trajetória de desestruturação do mercado de trabalho (que marcou principalmente as últimas décadas do século passado), mas demonstraram que algumas características problemáticas não foram superadas ao longo do tempo.
Desigualdades
O relatório ressalta, por exemplo, a persistência da significativa diferença entre homens e mulheres no mercado de trabalho. A taxa de participação das mulheres aumentou nos últimos anos, mas a diferença continua sendo de 23 pontos percentuais (58,9% do total das mulheres fazem parte do universo dos trabalhadores - empregados ou não -, em comparação com 82% dos homens, verificados em 2006). O nível de ocupação das mulheres passou de 48,5%, em 1992, para 53,3%, em 2006 e cresceu mais que o dos homens. A diferença, que era de 33 pontos percentuais em 1992, caiu para 24 pontos percentuais em 2006, mas continua relativamente alta.
Outro índice que recuou muito pouco na análise histórica é a desigualdade de remuneração entre homens e mulheres, ainda mais aguda quando o foco se volta para as diferenças raciais. Em 1992, as mulheres recebiam 61,5% dos rendimentos dos homens e os negros, em geral, ganhavam 50% dos brancos. Em 2006, o primeiro índice chegou a 70,7% e o segundo oscilou para 53,2%. Ou seja, 14 anos se passaram e a disparidade racial praticamente não mudou. “Um dos técnicos que analisou gráficos brasileiros disse que os índices de desigualdades seguem uma trajetória próxima da linha reta, muito semelhante ao batimento cardíaco de um morto”, analisa Laís Abramo, da OIT Brasil.
Dados sobre a diferença de rendimentos entre negros e brancos são apresentados quase sempre são acompanhados pela ressalva da possível existência de diferença na escolaridade. Outra estatística de 2006, porém, revela a proporção dos abismos de gênero e raça no Brasil. Apenas entre pessoas com 15 anos ou mais de escolaridade, os homens negros recebiam 73,9% em comparação aos ganhos dos homens brancos. Já os salários das mulheres brancas e das mulheres negras batiam, respectivamente, em 56,2% e em 41,1% do salário dos mesmos homens brancos.
Apesar da detecção de algumas mudanças neste quadro desigual, outro índice que preocupa é o da distribuição funcional da renda. A diferença entre a remuneração dos empregados (trabalho) e o excedente operacional bruto (capital) tem sido cada vez mais desfavorável para a base da pirâmide social. Em 1995, a distribuição era de 57,7% para os trabalhadores e de 42,3% para o capital. Em 2005, essa mesma divisão mudou para 53,3% e 47,7%.
Margem e rendimento
Apesar do importante aumento dos níveis de ocupação e do emprego formal, a taxa de informalidade continua alta e a escala de desempregados ainda é expressiva. De acordo com a Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) realizada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e pela Fundação Seade, em agosto de 2008 foram contabilizadas 2,91 milhões de pessoas desempregadas nas seis regiões metropolitanas pesquisadas - Belo Horizonte (MG), Porto Alegre (RS), Recife (RE), Salvador (BA), São Paulo (SP) e Brasília (DF) -, 22 mil a menos do que no mês anterior. Na avaliação de Patrícia Lino Costa, do Dieese, ainda há muita margem para a redução desses índices. A taxa de desemprego total de 14,6% já foi de apenas cerca de 9% em 1989.
A pesquisadora ressalta ainda que uma porcentagem substantiva de desempregados com baixa qualificação (cerca de 20%) permanece fora do mercado formal por períodos longos - mais de um ano sem emprego. Eles se encontram nas estatísticas dos desempregados ocultos (por trabalho precário ou por desalento) do PED do Dieese. Curiosamente, o boletim de agosto do Ipea diagnosticou ainda uma reversão da tendência de queda da informalidade, que voltou a crescer em maio e junho deste ano.
Parcela grande dos empregos que estão sendo formalizados dizem respeito a segmentos de baixa remuneração. Dados do Caged do MTE mostram que 82% das vagas criadas em maio de 2008 se deram na faixa de remuneração entre 0 a 2 salários mínimos. Apenas 5% dos empregados registrados no mês recebiam mais que quatro salários mínimos, ou seja, R$ 1.660,00. O salário mínimo necessário para a garantia dos direitos básicos dos cidadãos calculado pelo Dieese para o ano de 2006 ficou em R$ 1.564,00.
Já a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2007, divulgados pelo IBGE, revela que o rendimento médio real dos trabalhadores passou de R$ 831, em 2004, para R$ 960, em 2007. Apesar do salto, a média de R$ 1.011,00, registrada em 1997, ainda não foi superada.
A despeito do pequeno recuo do índice de Gini da renda do trabalho, a distribuição desigual dos rendimentos ainda é acachapante. No ano passado, a camada dos 10% que ganha menos ficou com apenas 1,1% do total dos rendimentos do trabalho, enquanto que a nata dos 10% que ganham melhores salários abocanhou 42% do total das remunerações.
Corte de custos
Do conjunto de problemas relacionados ao mercado de trabalho, um dos mais preocupantes é o da rotatividade de mão-de-obra. Nos últimos dez anos, as taxas de rotatividade se mantiveram em patamares elevados, acima de 40% praticamente em todo o período. Em 2007, o saldo de contratações formais superou o de demissões em cerca de 1,6 milhão (Caged), quantidade 5,85% superior a 2006. Esse 1,6 milhão derivou da admissão de 14,3 milhões de trabalhadores e da demissão de outros 12,7 milhões. Dessa soma de empregados desligados do emprego, 59,4%, ou 7,6 milhões foram dispensados por meio de demissões sem justa causa ou imotivada.
Com base no cruzamento da alta rotatividade com os tímidos resultados nos índices de rendimento, a pesquisadora Patrícia Lino, do Dieese, afirma que a substituição de empregados vem sendo utilizada para reduzir os custos das empresas. Essa tendência impede a qualificação e o treinamento mais apurado dos trabalhadores com vistas à estabilidade de médio e longo prazo, o que poderia contribuir para a melhoria dos rendimentos.
“Os salários dos trabalhadores admitidos no triênio 2005-2007 foram sempre inferiores aos dos trabalhadores desligados (nem todos por justa causa). Os percentuais de redução foram 11,42%, em 2005, 11,06%, em 2006, e 9,15%, em 2007. Ou seja, no momento da contratação, os novos trabalhadores são, na maior parte, contratados com salários menores, o que implica redução gradual do salário médio”, coloca nota técnica do Dieese a respeito da Convenção 158 da OIT, que estabelece garantias contra a dispensa imotivada.
“De um modo geral, a permanência no mesmo emprego traz qualidade ao trabalho e este fato, combinado com investimentos na qualificação, tende a ser um fator determinante para o aumento da produtividade, uma vez que a mão-de-obra mais qualificada é mais preparada para promover a inovação”, completa a nota. O MTE e o Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (Codefat) estimam que 9,7 milhões de pessoas serão demitidas em 2008, o que representa cerca de 30% do mercado formal de trabalho.
Mas nem tudo está perdido. “Níveis mais elevados de emprego dão a segurança (e possivelmente os recursos) necessários para que uma família possa proporcionar melhor educação a seus filhos. Ao mesmo tempo, é provável que uma população mais educada consiga melhores colocações”, sustenta o relatório, que sublinha a promoção do trabalho decente como elo para a melhoria da qualidade de vida.
*em parceria com a Revista do Brasil
(Repórter Brasil)
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