Thiago Romero, da Agência FAPESP
Mais de 71 mil quilômetros quadrados do território nacional, em sua quase totalidade na costa dos estados do Nordeste, contam com velocidades de vento superiores a sete metros por segundo, que propiciam um potencial eólico da ordem de 272 terawatts-hora por ano (TWh/ano) de energia elétrica.
Trata-se de uma cifra bastante expressiva, uma vez que o consumo nacional de energia elétrica é de 424 TWh/ano, aponta estudo publicado na Revista Brasileira de Ensino de Física, de autoria de pesquisadores do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
“Os números do potencial eólico brasileiro foram estimados com os mesmos modelos de previsão de tempo e estudos climáticos. Como esses modelos são validados para locais específicos das diferentes regiões do país, esse potencial eólico pode estar subestimado”, disse Fernando Ramos Martins, da Divisão de Clima e Meio Ambiente do CPTEC/Inpe e um dos autores do artigo, à Agência FAPESP.
Mas, segundo ele, com as informações disponíveis atualmente, levando em conta todas as dificuldades inerentes aos altos custos da geração de energia eólica, é possível afirmar que apenas o potencial da energia dos ventos do Nordeste seria capaz de suprir quase dois terços de toda a demanda nacional por eletricidade.
“O problema é que, atualmente, o índice de aproveitamento eólico na matriz energética brasileira não chega a 1%. A capacidade instalada é muito pequena comparada à dos países líderes em geração eólica. Praticamente toda a energia renovável no Brasil é proveniente da geração de hidreletricidade”, apontou.
Parte dos dados do estudo também foi extraída do Atlas do Potencial Eólico Brasileiro, produzido pelo Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel) com o objetivo de fornecer informações para capacitar tomadores de decisão na identificação de áreas adequadas para aproveitamentos eólico-elétricos.
“Os locais mais propícios no país para a exploração da energia eólica estão no Nordeste, principalmente na costa do Ceará e do Rio Grande do Norte, e na região Sul”, disse Martins.
Além de descrever a evolução do aproveitamento da energia eólica no mundo, os pesquisadores do Inpe trazem no artigo dados inéditos sobre a situação atual do uso desse recurso para geração de eletricidade em diferentes países.
Sem emissões
Segundo o estudo, o setor de energia eólica tem apresentado crescimento acelerado em todo o mundo desde o início da década de 1990. A capacidade instalada total mundial de aerogeradores voltados à produção de energia elétrica atingiu cerca de 74,2 mil megawatts (MW) no fim de 2006, um crescimento de mais de 20% em relação ao ano anterior.
“Enquanto o Brasil explora menos de 1% de sua energia eólica, países como Alemanha, Espanha e Noruega utilizam por volta de 10%”, disse Martins, lembrando que a conversão da energia cinética dos ventos em energia mecânica é utilizada há mais de três mil anos.
Em 2006, o Brasil contava com 237 megawatts (MW) de capacidade eólica instalada, principalmente por conta dos parques na cidade de Osório (RS). O complexo conta com 75 aerogeradores de 2 MW cada, instalados em três parques eólicos com capacidade de produção de 417 gigawatts-hora (GWh) por ano.
O pesquisador do CPTEC aponta ainda que, dentre as fontes energéticas que não acarretam a emissão de gases do efeito estufa, a energia contida no vento também demonstra potencial para atender à segurança do fornecimento energético no país.
“Políticas nacionais de incentivos estão começando a produzir os primeiros resultados, a exemplo do Proinfa [Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica]. Espera-se um crescimento da exploração desse recurso nos próximos anos no Brasil”, disse Martins.
O Proinfa, coordenado pelo Ministério de Minas e Energia, foi criado em 2002 para a diversificação da matriz energética nacional. O programa estabelece a contratação pelas empresas de uma parcela mínima de energia elétrica produzida a partir de fontes renováveis, entre as quais energia eólica e a energia proveniente de pequenas centrais hidrelétricas.
Sonda e Swera
Martins destaca ainda duas iniciativas do CPTEC que têm dado suporte científico à produção de informações sobre a os recursos eólicos no território brasileiro. Entre os esforços mais recentes, explica, estão a base de dados do Projeto Sonda, um sistema de coleta de dados de vento operado e gerenciado pelo centro.
O objetivo do projeto, que tem dezenas de estações de coleta de dados eólicos com medidores instalados em diversos estados brasileiros, é disponibilizar informações que permitam o aperfeiçoamento e a validação de modelos numéricos para estimativa de potencial energético de fontes renováveis.
O levantamento dos recursos de energia eólica no Brasil também vem sendo realizado pelo projeto Solar and Wind Energy Resources Assessment (Swera), conduzido pela Divisão de Clima e Meio Ambiente do CPTEC, com financiamento do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).
Toda a base de dados gerada até o momento pelo Sonda e pelo Swera, que terá sua segunda fase iniciada no começo de 2009, está disponível para acesso gratuito no site dos projetos.
“Essas bases de dados são extremamente úteis para a definição de políticas junto ao setor energético nacional e para o desenvolvimento de projetos de pesquisa científica sobre a temática do aproveitamento de recursos energéticos. Os resultados obtidos até o momento demonstram o potencial do país no que diz respeito à disponibilidade dos recursos renováveis”, afirmou Martins.
Além de apresentar uma revisão dos conceitos físicos relacionados ao emprego da energia cinética dos ventos na geração de eletricidade, o artigo descreve ainda os aspectos dinâmicos dos ventos e detalhes sobre a circulação atmosférica na Terra, incluindo os fatores que influenciam a velocidade e direção dos ventos nas proximidades da superfície.
Para ler o artigo O aproveitamento da energia eólica, de Fernando Ramos Martins e outros, disponível na biblioteca on-line SciELO (Bireme/FAPESP), clique aqui.
(Agência FAPESP)
sexta-feira, 9 de janeiro de 2009
“Outro mundo é possível, sim nós podemos”
Fernanda Muller, do CarbonoBrasil
O grande desafio da civilização é “construir e cultivar a sustentabilidade”, disse o autor de livros como A Teia da Vida e Conexões Ocultas. Para Capra, o conceito de sustentabilidade está ligado à estruturação das comunidades de maneira que elas não interfiram na habilidade da natureza de sustentar a vida.
Nas últimas três décadas, segundo o físico, a humanidade passa por um novo tipo de capitalismo, que engloba inovações e sabedoria. A globalização resultou na acumulação de capital por poucos, em conseqüências ambientais desastrosas, na quebra da democracia e no aumento da pobreza, afirmou Capra.
As biotecnologias ‘invadiram a santidade da vida’, que foi transformada em commodity, disse. Tudo isto é insustentável social, ecológico e financeiramente. “Precisamos mudar este jogo”, enfatizou o físico.
Capra dá pistas de como começar esta mudança, afirmando que o primeiro passo é reconhecer a possibilidade de remodelar esta situação e percebendo que os lucros não são superiores a tudo. Para ele, a questão crítica não é tecnológica, mas sim a falta de vontade política.
Movimento Global da Justiça
O físico apresentou o Movimento Global da Justiça, composto por ONGs e que propõe medidas concretas para a reestruturação das instituições financeiras. Este novo tipo de movimento político depende de uma rede de institutos de pesquisas, pensadores e estudiosos.
Segundo ele, três são os pontos que devem ser focalizados: o desafio de remodelar a política, as controvérsias entre transgênicos e agricultura sustentável e o design ecológico. Isto tudo precisa ser feito com uma compreensão de como a natureza sustenta a vida, entendendo as conexões. “Precisamos passar da biologia para a ecologia”, disse ele ao referir-se à visão sistêmica e às interconexões dos processos ecológicos. Conhecer a teia da vida, salienta, é crítico para este novo design.
Tocando em um ponto falho da base da vida humana, Capra destacou que “a literatura ecológica deve ser a parte mais importante da educação em todos os níveis. “Precisamos ensinar nossas crianças, políticos e estudantes.”
Para o físico, este é o primeiro passo no caminho para a sustentabilidade. O segundo seria o design ecológico. “Temos que entender o vazio entre o design humano e da natureza. Os princípios do design ecológico refletem os princípios da organização que a natureza desenhou para apoiar a teia da vida”, reflete.
Este novo desenho inclui a agricultura orgânica, clusters industriais ecológicos e a mudança de uma economia orientada pelos produtos para uma guiada para os serviços. Atualmente já existem edifícios que produzem mais energia do que consomem e que não geram resíduos; assim como células a combustível de hidrogênio, que incorporam os princípios básicos da ecologia: pequenas escalas, não poluidoras e nem geradoras de resíduos.
Capra defende que a energia nuclear não possui um design ecológico, com diversos riscos, como a falta de conhecimento de como processar os resíduos radioativos. De acordo com ele, nenhuma empresa de seguros irá assegurar um reator nuclear. Além disso, o físico afirma que o urânio não é um combustível renovável e a tecnologia aplicada para a produção desta energia não é viável sem subsídios governamentais.
Vontade Política
Com as tecnologias disponíveis atualmente, a transição para um futuro sustentável é possível, “tudo que precisamos é vontade política e liderança”, garante. Capra diz que a vontade política tem aumentado, como o papel de Al Gore na criação de uma consciência ecológica, o Relatório do economista inglês Nicholas Stern que aponta a possibilidade de estabilizar as mudanças climáticas investindo apenas 1% do Produto Interno Bruto (PIB) global e o livro de Lester Brown, fundador do Worldwatch Institute.
A obra “Plano B 3.0″ é um guia detalhado para “salvar a civilização”, nas palavras de Capra. Ele destacou a importância da eleição de Barack Obama, dizendo que o novo presidente é inteligente, curioso e atencioso. “É um ótimo ouvinte, facilitador e mediador”. O seu programa político dá ênfase para as energias renováveis e pretende criar cinco milhões de empregos ‘verdes’.
“Outro mundo é possível, sim nós podemos”, concluiu Capra em uma analogia aos slogans do Fórum Social Mundial e da campanha de Obama.
(CarbonoBrasil)
O grande desafio da civilização é “construir e cultivar a sustentabilidade”, disse o autor de livros como A Teia da Vida e Conexões Ocultas. Para Capra, o conceito de sustentabilidade está ligado à estruturação das comunidades de maneira que elas não interfiram na habilidade da natureza de sustentar a vida.
Nas últimas três décadas, segundo o físico, a humanidade passa por um novo tipo de capitalismo, que engloba inovações e sabedoria. A globalização resultou na acumulação de capital por poucos, em conseqüências ambientais desastrosas, na quebra da democracia e no aumento da pobreza, afirmou Capra.
As biotecnologias ‘invadiram a santidade da vida’, que foi transformada em commodity, disse. Tudo isto é insustentável social, ecológico e financeiramente. “Precisamos mudar este jogo”, enfatizou o físico.
Capra dá pistas de como começar esta mudança, afirmando que o primeiro passo é reconhecer a possibilidade de remodelar esta situação e percebendo que os lucros não são superiores a tudo. Para ele, a questão crítica não é tecnológica, mas sim a falta de vontade política.
Movimento Global da Justiça
O físico apresentou o Movimento Global da Justiça, composto por ONGs e que propõe medidas concretas para a reestruturação das instituições financeiras. Este novo tipo de movimento político depende de uma rede de institutos de pesquisas, pensadores e estudiosos.
Segundo ele, três são os pontos que devem ser focalizados: o desafio de remodelar a política, as controvérsias entre transgênicos e agricultura sustentável e o design ecológico. Isto tudo precisa ser feito com uma compreensão de como a natureza sustenta a vida, entendendo as conexões. “Precisamos passar da biologia para a ecologia”, disse ele ao referir-se à visão sistêmica e às interconexões dos processos ecológicos. Conhecer a teia da vida, salienta, é crítico para este novo design.
Tocando em um ponto falho da base da vida humana, Capra destacou que “a literatura ecológica deve ser a parte mais importante da educação em todos os níveis. “Precisamos ensinar nossas crianças, políticos e estudantes.”
Para o físico, este é o primeiro passo no caminho para a sustentabilidade. O segundo seria o design ecológico. “Temos que entender o vazio entre o design humano e da natureza. Os princípios do design ecológico refletem os princípios da organização que a natureza desenhou para apoiar a teia da vida”, reflete.
Este novo desenho inclui a agricultura orgânica, clusters industriais ecológicos e a mudança de uma economia orientada pelos produtos para uma guiada para os serviços. Atualmente já existem edifícios que produzem mais energia do que consomem e que não geram resíduos; assim como células a combustível de hidrogênio, que incorporam os princípios básicos da ecologia: pequenas escalas, não poluidoras e nem geradoras de resíduos.
Capra defende que a energia nuclear não possui um design ecológico, com diversos riscos, como a falta de conhecimento de como processar os resíduos radioativos. De acordo com ele, nenhuma empresa de seguros irá assegurar um reator nuclear. Além disso, o físico afirma que o urânio não é um combustível renovável e a tecnologia aplicada para a produção desta energia não é viável sem subsídios governamentais.
Vontade Política
Com as tecnologias disponíveis atualmente, a transição para um futuro sustentável é possível, “tudo que precisamos é vontade política e liderança”, garante. Capra diz que a vontade política tem aumentado, como o papel de Al Gore na criação de uma consciência ecológica, o Relatório do economista inglês Nicholas Stern que aponta a possibilidade de estabilizar as mudanças climáticas investindo apenas 1% do Produto Interno Bruto (PIB) global e o livro de Lester Brown, fundador do Worldwatch Institute.
A obra “Plano B 3.0″ é um guia detalhado para “salvar a civilização”, nas palavras de Capra. Ele destacou a importância da eleição de Barack Obama, dizendo que o novo presidente é inteligente, curioso e atencioso. “É um ótimo ouvinte, facilitador e mediador”. O seu programa político dá ênfase para as energias renováveis e pretende criar cinco milhões de empregos ‘verdes’.
“Outro mundo é possível, sim nós podemos”, concluiu Capra em uma analogia aos slogans do Fórum Social Mundial e da campanha de Obama.
(CarbonoBrasil)
Plano do governo é uma ‘banana’ para Copenhagen
Redação do Greenpeace
O governo brasileiro deu uma banana para as negociações que o mundo vem fazendo para chegar a um acordo sobre novas e rígidas metas de redução das emissões dos gases do efeito estufa. Às vésperas do Natal, o Ministério das Minas e Energia abriu o Plano Decenal de Energia (2008-2017) para consulta pública, com um texto que vai na contramão de tudo que vem sendo discutido até agora para a construção de um novo acordo climático, a ser finalizado em dezembro de 2009, na reunião da ONU sobre clima, em Copenhangen.
Enquanto o mundo estuda meios de reduzir drasticamente as emissões globais dos gases do efeito estufa, o Plano Decenal de Energia do Brasil prioriza e estimula as fontes sujas de energia, ignora o potencial da eficiência energética e considera a questão socioambiental como mero entrave para o progresso do país. Um desastre total.
O Plano Decenal prevê a construção de 81 usinas termelétricas no país entre 2008 e 2017. O Nordeste, por exemplo, que conta com os melhores regimes de ventos no Brasil, vai receber 55 novas usinas térmicas. Enquanto o Greenpeace discute a geração de uma Itaipu de ventos na região com o Banco do Nordeste, governadores e a comissão de energias renováveis do Congresso, o governo federal promove uma energia cara e suja.
Na reunião da ONU sobre clima realizada em Poznan, na Polônia (dezembro de 2008), o Ministério do Meio Ambiente anunciou com pompa e circunstância o Plano Nacional de Mudanças Climáticas com metas de redução de emissões. Agora, para consumo interno, mostra a sua verdadeira face.
“Mais uma vez, o governo mostra a esquizofrenia da sua política ambiental. Fez barulho em Poznan com um plano de metas para reduzir o desmatamento e as emissões, mas no Brasil, anuncia às vésperas do Natal um aumento de 172% nas emissões de CO2 no setor termelétrico, um belo presente de grego para os brasileiros”, diz Marcelo Furtado, diretor executivo do Greenpeace.
Num primeiro momento, a expansão de usinas termelétricas ocorre no Nordeste, com unidades prioritariamente à base de óleo diesel. Num segundo momento, entre 2014 e 2017, a expansão ocorre na região sul com uma fonte ainda mais poluente - o carvão mineral. O IPCC aponta o ano de 2015 como ano-chave para atingirmos o pico das emissões globais de gases do efeito estufa. A partir deste ponto deveremos reduzir de maneira equitativa essas emissões. Enquanto o mundo busca converter sua matriz elétrica suja em renovável, o Brasil toma justamente o caminho oposto.
O planejamento energético proposto pelo governo em seu Plano Decenal é orientado por uma abordagem ultrapassada e que privilegia o aumento da geração e não a administração da demanda. Ou seja, ignora de maneira espetacular os benefícios da redução do consumo pelo aumento da eficiência energética como troca de lâmpadas incandescentes e outros equipamentos por substitutos com menor consumo. É emblemático o fato de que o plano, em nenhum momento, faz referência à ‘eficiência energética’.
A referência bibliográfica do plano deixa claro que toda a contribuição técnica proporcionada pela sociedade civil na discussão de uma nova matriz elétrica para o Brasil foi ignorada.
O plano ignora, por exemplo, o verdadeiro potencial das fontes de energia renováveis modernas no Brasil, como solar e eólica, e minimiza completamente o papel das pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) e biomassa. Por outro lado, promove novas (e desnecessárias) usinas hidrelétricas na Amazônia, que têm alto impacto ambiental e consumirão grandes quantidades de recursos financeiros, que poderiam ser melhor aproveitados para a geração de emprego e renda no país, com fontes limpas e sustentáveis.
O Brasil não precisa de mais hidrelétricas na Amazônia nem de termelétricas em qualquer parte. O estudo [R]evolução Energética, do Greenpeace, apresenta um cenário para o país em que poderemos atingir uma matriz elétrica com 88% de energias renováveis e índices de eficiência energética de até 30%. Como não bastasse, essa matriz limpa é bilhões de reais mais barata do que a proposta pelo governo.
“Momentos de crise são também momentos de oportunidade, e o governo brasileiro deveria estar, a exemplo de outras nações, comprometido com a solução para as mudanças climáticas. Os novos investimentos para o setor elétrico deveriam ser prioritariamente feitos para promover as energias renováveis, especialmente num país que é privilegiado nesse tipo de fonte energética”, afirma Marcelo Furtado.
(Greenpeace)
O governo brasileiro deu uma banana para as negociações que o mundo vem fazendo para chegar a um acordo sobre novas e rígidas metas de redução das emissões dos gases do efeito estufa. Às vésperas do Natal, o Ministério das Minas e Energia abriu o Plano Decenal de Energia (2008-2017) para consulta pública, com um texto que vai na contramão de tudo que vem sendo discutido até agora para a construção de um novo acordo climático, a ser finalizado em dezembro de 2009, na reunião da ONU sobre clima, em Copenhangen.
Enquanto o mundo estuda meios de reduzir drasticamente as emissões globais dos gases do efeito estufa, o Plano Decenal de Energia do Brasil prioriza e estimula as fontes sujas de energia, ignora o potencial da eficiência energética e considera a questão socioambiental como mero entrave para o progresso do país. Um desastre total.
O Plano Decenal prevê a construção de 81 usinas termelétricas no país entre 2008 e 2017. O Nordeste, por exemplo, que conta com os melhores regimes de ventos no Brasil, vai receber 55 novas usinas térmicas. Enquanto o Greenpeace discute a geração de uma Itaipu de ventos na região com o Banco do Nordeste, governadores e a comissão de energias renováveis do Congresso, o governo federal promove uma energia cara e suja.
Na reunião da ONU sobre clima realizada em Poznan, na Polônia (dezembro de 2008), o Ministério do Meio Ambiente anunciou com pompa e circunstância o Plano Nacional de Mudanças Climáticas com metas de redução de emissões. Agora, para consumo interno, mostra a sua verdadeira face.
“Mais uma vez, o governo mostra a esquizofrenia da sua política ambiental. Fez barulho em Poznan com um plano de metas para reduzir o desmatamento e as emissões, mas no Brasil, anuncia às vésperas do Natal um aumento de 172% nas emissões de CO2 no setor termelétrico, um belo presente de grego para os brasileiros”, diz Marcelo Furtado, diretor executivo do Greenpeace.
Num primeiro momento, a expansão de usinas termelétricas ocorre no Nordeste, com unidades prioritariamente à base de óleo diesel. Num segundo momento, entre 2014 e 2017, a expansão ocorre na região sul com uma fonte ainda mais poluente - o carvão mineral. O IPCC aponta o ano de 2015 como ano-chave para atingirmos o pico das emissões globais de gases do efeito estufa. A partir deste ponto deveremos reduzir de maneira equitativa essas emissões. Enquanto o mundo busca converter sua matriz elétrica suja em renovável, o Brasil toma justamente o caminho oposto.
O planejamento energético proposto pelo governo em seu Plano Decenal é orientado por uma abordagem ultrapassada e que privilegia o aumento da geração e não a administração da demanda. Ou seja, ignora de maneira espetacular os benefícios da redução do consumo pelo aumento da eficiência energética como troca de lâmpadas incandescentes e outros equipamentos por substitutos com menor consumo. É emblemático o fato de que o plano, em nenhum momento, faz referência à ‘eficiência energética’.
A referência bibliográfica do plano deixa claro que toda a contribuição técnica proporcionada pela sociedade civil na discussão de uma nova matriz elétrica para o Brasil foi ignorada.
O plano ignora, por exemplo, o verdadeiro potencial das fontes de energia renováveis modernas no Brasil, como solar e eólica, e minimiza completamente o papel das pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) e biomassa. Por outro lado, promove novas (e desnecessárias) usinas hidrelétricas na Amazônia, que têm alto impacto ambiental e consumirão grandes quantidades de recursos financeiros, que poderiam ser melhor aproveitados para a geração de emprego e renda no país, com fontes limpas e sustentáveis.
O Brasil não precisa de mais hidrelétricas na Amazônia nem de termelétricas em qualquer parte. O estudo [R]evolução Energética, do Greenpeace, apresenta um cenário para o país em que poderemos atingir uma matriz elétrica com 88% de energias renováveis e índices de eficiência energética de até 30%. Como não bastasse, essa matriz limpa é bilhões de reais mais barata do que a proposta pelo governo.
“Momentos de crise são também momentos de oportunidade, e o governo brasileiro deveria estar, a exemplo de outras nações, comprometido com a solução para as mudanças climáticas. Os novos investimentos para o setor elétrico deveriam ser prioritariamente feitos para promover as energias renováveis, especialmente num país que é privilegiado nesse tipo de fonte energética”, afirma Marcelo Furtado.
(Greenpeace)
Homem-natureza: não basta boa vontade ou ideologia ecológica
Redação IHU On-line
Relacionar a questão do pluralismo cultural e religioso à ecologia é um dos desafios que a teologia enfrenta hoje. Para colaborar nessa discussão, o teólogo e monge beneditino Marcelo Barros participará do III Fórum Mundial de Teologia e Libertação, que ocorre em Belém, no Pará, nos próximos dias 21 a 25 de janeiro. Seu desejo é “aprofundar a fé e o projeto divino a partir da realidade dos povos empobrecidos e dos atuais problemas do mundo”. Nesse sentido, a responsabilidade da Teologia, segundo ele, é denunciar.
Nesta entrevista especial, concedida por e-mail à IHU On-Line, Barros afirma que, “para uma nova relação de respeito e de comunhão do ser humano com a natureza, não basta boa vontade ou ideologia ecológica”. Para ele, um caminho novo só será possível se os governos perceberem que “o capitalismo é, por essência, depredador” e que não existe um desenvolvimento sustentável dentro dele. E também critica o atual governo, especialmente o PAC, por ainda não ter rompido com a lógica do capitalismo no que se refere às questões ambientais.
Marcelo Barros é monge beneditino e biblista. Membro da Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT), é autor de 32 livros, entre os quais o recém-lançado “O Amor fecunda o Universo - Ecologia e espiritualidade” (Editora Agir, 2009), em coautoria de Frei Betto.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são os principais desafios e possibilidades que a Teologia da Libertação enfrenta hoje?
Marcelo Barros - Um importante desafio continua sendo aprofundar a fé e o projeto divino a partir da realidade dos povos empobrecidos e dos atuais problemas do mundo. A Teologia da Libertação se desenvolveu nas décadas de 70 e 80 a partir da inserção dos cristãos nos processos sociais latino-americanos (sandinistas na Nicarágua, FSMN em El Salvador, Cristãos para o Socialismo na Argentina e no Chile, CEBs e movimentos populares no Brasil, e assim por diante). Hoje, existe um processo de transformações sociais em curso em vários países da América Latina. Na Venezuela, fala-se em revolução socialista bolivariana; no Equador, em uma sociedade cidadã; na Bolívia, em uma revolução a partir da valorização das culturas indígenas. Onde está nisso tudo a Teologia da Libertação?
Outro importante desafio atual é reelaborar a Teologia da Libertação a partir da realidade diversa de um mundo pluralista e da responsabilidade das diversas religiões e tradições espirituais de contribuir com a paz, a justiça e o cuidado com a criação.
IHU On-Line - Pode esboçar alguns pontos que vão ser debatidos no Fórum, especialmente em sua conferência?
Marcelo Barros - Não terei propriamente uma conferência no Fórum. Penso que coordenarei uma oficina entre as muitas nas quais os participantes do Fórum de Teologia se dividirão, e essa oficina terá como tema “O Pluralismo Cultural e Religioso e o Desafio Ecológico”. Ali apresentarei o novo livro que está saindo de autoria minha e do Frei Betto: “O Amor fecunda o Universo - Ecologia e Espiritualidade”.
IHU On-Line - Quais são as articulações da teologia hoje? Existem debates teológicos com a sociedade civil em nível nacional ou latino-americano?
Marcelo Barros - Para haver pesquisa teológica, é necessário respirar-se um clima de liberdade e de diálogo respeitoso nas Igrejas e no mundo. Em vários países da América Latina, a teologia índia está presente no processo que, a partir das comunidades índias, repensa a organização social e política da sociedade e do mundo de forma a respeitar a diversidade, a interculturalidade e assim por diante. No Brasil, o fato do Fórum Social Mundial ter escolhido como tema a Amazônia e o 3º Fórum Mundial de Teologia e Libertação ter também assumido o tema da Ecologia conduz, nessa direção, os debates mais atuais.
IHU On-Line - Dados de 2005, indicam que a contaminação das águas no Brasil aumentou cinco vezes desde 1995, e que, desde 2000, o país foi responsável por cerca de 74% da área desmatada na América do Sul. Ao mesmo tempo, muito se critica os desafios ecológicos. Mas por onde se pode iniciar uma proposta mais articulada quando ainda se vê pouco apoio do governo? Por onde iniciar uma reflexão que ajude a uma mudança de mentalidade social e até religiosa com relação à natureza?
Marcelo Barros - Para uma nova relação de respeito e de comunhão do ser humano com a natureza, não basta boa vontade ou ideologia ecológica. Enquanto os governos não perceberem que o capitalismo é, por essência, depredador, e que não existe verdadeiramente um “desenvolvimento sustentável” dentro desse sistema, não temos possibilidade de um caminho novo. Estão aí os projetos de hidroelétricas na Amazônia e do desvio das águas e a construção dos canais do São Francisco para provar. Não é apenas com PAC que o governo cuida dessa questão. Romper com a lógica desse sistema é fundamental. Não podemos continuar aceitando que, entre uma estrada e um matinho, fiquemos com o desenvolvimento.
A responsabilidade da teologia nesse contexto é denunciar (alguns teólogos se pronunciaram com muita propriedade e clareza quando a ministra Marina Silva se sentiu obrigada a pedir demissão do ministério do Meio Ambiente). Além disso, temos de favorecer, desde o início, o processo de uma nova educação nas escolas, nas Igrejas e em todos os setores da sociedade. É por meio de uma nova educação que poderemos mudar isso.
IHU On-Line - Em que pontos a teologia e a ecologia convergem atualmente? Como a teologia pode ajudar a responder aos “gemidos da criação”?
Marcelo Barros - Para responder aos “gemidos da criação”, temos antes de ser capazes de “escutá-los” e compreendê-los em sua natureza complexa e suas causas.
A teologia eco-feminista, que associa a tragédia que ocorre com a Terra à opressão infligida durante séculos à mulher, une a ecologia social (igualdade homem-mulher) à Ecologia ambiental. E a Teologia Pluralista da Libertação procura resgatar e revalorizar as antigas expressões espirituais das culturas indígenas e negras que adoram a divindade nas suas manifestações na terra, na água e em todos os elementos da natureza.
IHU On-Line - A partir da figura de Cristo, que guia e orienta tantas denominações cristãs no mundo, como entender a ecologia? Qual foi a relação dele com a criação e como ele nos ensina a conviver com os demais seres não-humanos?
Marcelo Barros - Quando o quarto evangelho diz: “A Palavra de Deus se fez Carne”, podemos compreender que todo o universo, com a imensidade da sua “comunidade da vida”, não somente se torna uma espécie de presépio permanente para a manifestação humana de Deus, na pessoa de Jesus Cristo, mas também é assumida mesmo pela encarnação como uma espécie de extensão do corpo do Cristo. Os evangelhos e cartas, escritos tantos anos depois, não tinham nenhuma preocupação de falar em ecologia ou de aprofundar o que Jesus poderia nos dizer sobre isso. São testemunhos de como ele nos manifestou o projeto divino que os evangelhos chamam de “reino de Deus”.
Diversas parábolas do evangelho e diversas palavras de Jesus nos mostram que a comunhão com a natureza é fundamental como caminho de intimidade com Deus. É assim que, no sermão da montanha, ele nos convida a “olhar as aves do céu e os lírios do campo” (Mateus 6, 27-28), para aprender deles a simplicidade e a viver no essencial, preocupação, hoje, tão atual com o desafio de uma sociedade que não é sustentável e não pode mais manter o mesmo ritmo de crescimento de antes. Ele nos estimula a construir a casa sobre a rocha e a abrir os olhos aos sinais do reino presentes em torno a nós no mundo. Hoje, todo o universo parece crucificado com Cristo (não são mais somente, como dizia Jon Sobrino, “os povos crucificados”). É preciso crer na ressurreição e ser testemunhas disso. Eu procuro desenvolver uma teologia ecológica da eucaristia: a ceia da partilha e da comunhão na qual a presença de Cristo se dá através dos elementos básicos da vida e da natureza.
Hoje, cada vez mais aumenta o número das pessoas que levantam a questão dos direitos dos animais e a necessidade da nossa sociedade mudar totalmente a forma como os animais são tratados como objeto para o consumo e maltratados imensamente para engordar mais rápido e para ser sacrificados com mais lucro. Quem aprofunda uma espiritualidade ecológica começa a pensar em um vegetarianismo de paz e não-violência com as outras espécies animais.
IHU On-Line - O que seria uma espiritualidade libertadora? Que grupos e/ou experiências você pode salientar nesse sentido?
Marcelo Barros - Se a espiritualidade significa “deixar-se conduzir pelo Espírito”, a experiência de muitos de nós é que podemos vivenciar isso na prática da solidariedade. Desde 1978, assessoro e acompanho a Pastoral da Terra. Tenho de confessar que, poucas vezes, vivi experiências verdadeiramente místicas, quase de êxtase, como quando acompanhei uma ou outra comunidade de lavradores sem-terra a ocupar um terreno incultivado. Cantando e orando pela madrugada, eu me senti plenamente refazendo o Êxodo bíblico e pude experimentar a presença divina junto àquele povo.
É verdade que vivo isso também quando participo de algum culto afro-brasileiro no Candomblé. Todo dia, procuro encontrar essa intimidade com Deus no sacramento e posso dizer que a encontro na escuridão e sobriedade da fé, Mas, no outro e no diferente, parece que ele se excede e grita para nós sua presença e seu amor. Todos os grupos que vivem a solidariedade como expressão de fé vivem uma espiritualidade libertadora.
Para mim, são exemplos e testemunhas de espiritualidade libertadora, o padre Júlio Lancelotti em São Paulo (ele, as irmãs beneditinas e equipe) no trabalho com o povo da rua e com as crianças que têm Aids. Continuo vibrando com o testemunho profético de irmãos como Dom Pedro Casaldáliga, Dom Tomás Balduíno e outros pastores que não descansam na sua profecia. E devo dizer com sinceridade que o MST, mesmo sendo um movimento leigo e que não tem nenhuma opção religiosa, sempre me toca pela força espiritual que sinto neles, em cada contato e em cada evento do qual participo.
(IHU On-line)
Relacionar a questão do pluralismo cultural e religioso à ecologia é um dos desafios que a teologia enfrenta hoje. Para colaborar nessa discussão, o teólogo e monge beneditino Marcelo Barros participará do III Fórum Mundial de Teologia e Libertação, que ocorre em Belém, no Pará, nos próximos dias 21 a 25 de janeiro. Seu desejo é “aprofundar a fé e o projeto divino a partir da realidade dos povos empobrecidos e dos atuais problemas do mundo”. Nesse sentido, a responsabilidade da Teologia, segundo ele, é denunciar.
Nesta entrevista especial, concedida por e-mail à IHU On-Line, Barros afirma que, “para uma nova relação de respeito e de comunhão do ser humano com a natureza, não basta boa vontade ou ideologia ecológica”. Para ele, um caminho novo só será possível se os governos perceberem que “o capitalismo é, por essência, depredador” e que não existe um desenvolvimento sustentável dentro dele. E também critica o atual governo, especialmente o PAC, por ainda não ter rompido com a lógica do capitalismo no que se refere às questões ambientais.
Marcelo Barros é monge beneditino e biblista. Membro da Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT), é autor de 32 livros, entre os quais o recém-lançado “O Amor fecunda o Universo - Ecologia e espiritualidade” (Editora Agir, 2009), em coautoria de Frei Betto.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são os principais desafios e possibilidades que a Teologia da Libertação enfrenta hoje?
Marcelo Barros - Um importante desafio continua sendo aprofundar a fé e o projeto divino a partir da realidade dos povos empobrecidos e dos atuais problemas do mundo. A Teologia da Libertação se desenvolveu nas décadas de 70 e 80 a partir da inserção dos cristãos nos processos sociais latino-americanos (sandinistas na Nicarágua, FSMN em El Salvador, Cristãos para o Socialismo na Argentina e no Chile, CEBs e movimentos populares no Brasil, e assim por diante). Hoje, existe um processo de transformações sociais em curso em vários países da América Latina. Na Venezuela, fala-se em revolução socialista bolivariana; no Equador, em uma sociedade cidadã; na Bolívia, em uma revolução a partir da valorização das culturas indígenas. Onde está nisso tudo a Teologia da Libertação?
Outro importante desafio atual é reelaborar a Teologia da Libertação a partir da realidade diversa de um mundo pluralista e da responsabilidade das diversas religiões e tradições espirituais de contribuir com a paz, a justiça e o cuidado com a criação.
IHU On-Line - Pode esboçar alguns pontos que vão ser debatidos no Fórum, especialmente em sua conferência?
Marcelo Barros - Não terei propriamente uma conferência no Fórum. Penso que coordenarei uma oficina entre as muitas nas quais os participantes do Fórum de Teologia se dividirão, e essa oficina terá como tema “O Pluralismo Cultural e Religioso e o Desafio Ecológico”. Ali apresentarei o novo livro que está saindo de autoria minha e do Frei Betto: “O Amor fecunda o Universo - Ecologia e Espiritualidade”.
IHU On-Line - Quais são as articulações da teologia hoje? Existem debates teológicos com a sociedade civil em nível nacional ou latino-americano?
Marcelo Barros - Para haver pesquisa teológica, é necessário respirar-se um clima de liberdade e de diálogo respeitoso nas Igrejas e no mundo. Em vários países da América Latina, a teologia índia está presente no processo que, a partir das comunidades índias, repensa a organização social e política da sociedade e do mundo de forma a respeitar a diversidade, a interculturalidade e assim por diante. No Brasil, o fato do Fórum Social Mundial ter escolhido como tema a Amazônia e o 3º Fórum Mundial de Teologia e Libertação ter também assumido o tema da Ecologia conduz, nessa direção, os debates mais atuais.
IHU On-Line - Dados de 2005, indicam que a contaminação das águas no Brasil aumentou cinco vezes desde 1995, e que, desde 2000, o país foi responsável por cerca de 74% da área desmatada na América do Sul. Ao mesmo tempo, muito se critica os desafios ecológicos. Mas por onde se pode iniciar uma proposta mais articulada quando ainda se vê pouco apoio do governo? Por onde iniciar uma reflexão que ajude a uma mudança de mentalidade social e até religiosa com relação à natureza?
Marcelo Barros - Para uma nova relação de respeito e de comunhão do ser humano com a natureza, não basta boa vontade ou ideologia ecológica. Enquanto os governos não perceberem que o capitalismo é, por essência, depredador, e que não existe verdadeiramente um “desenvolvimento sustentável” dentro desse sistema, não temos possibilidade de um caminho novo. Estão aí os projetos de hidroelétricas na Amazônia e do desvio das águas e a construção dos canais do São Francisco para provar. Não é apenas com PAC que o governo cuida dessa questão. Romper com a lógica desse sistema é fundamental. Não podemos continuar aceitando que, entre uma estrada e um matinho, fiquemos com o desenvolvimento.
A responsabilidade da teologia nesse contexto é denunciar (alguns teólogos se pronunciaram com muita propriedade e clareza quando a ministra Marina Silva se sentiu obrigada a pedir demissão do ministério do Meio Ambiente). Além disso, temos de favorecer, desde o início, o processo de uma nova educação nas escolas, nas Igrejas e em todos os setores da sociedade. É por meio de uma nova educação que poderemos mudar isso.
IHU On-Line - Em que pontos a teologia e a ecologia convergem atualmente? Como a teologia pode ajudar a responder aos “gemidos da criação”?
Marcelo Barros - Para responder aos “gemidos da criação”, temos antes de ser capazes de “escutá-los” e compreendê-los em sua natureza complexa e suas causas.
A teologia eco-feminista, que associa a tragédia que ocorre com a Terra à opressão infligida durante séculos à mulher, une a ecologia social (igualdade homem-mulher) à Ecologia ambiental. E a Teologia Pluralista da Libertação procura resgatar e revalorizar as antigas expressões espirituais das culturas indígenas e negras que adoram a divindade nas suas manifestações na terra, na água e em todos os elementos da natureza.
IHU On-Line - A partir da figura de Cristo, que guia e orienta tantas denominações cristãs no mundo, como entender a ecologia? Qual foi a relação dele com a criação e como ele nos ensina a conviver com os demais seres não-humanos?
Marcelo Barros - Quando o quarto evangelho diz: “A Palavra de Deus se fez Carne”, podemos compreender que todo o universo, com a imensidade da sua “comunidade da vida”, não somente se torna uma espécie de presépio permanente para a manifestação humana de Deus, na pessoa de Jesus Cristo, mas também é assumida mesmo pela encarnação como uma espécie de extensão do corpo do Cristo. Os evangelhos e cartas, escritos tantos anos depois, não tinham nenhuma preocupação de falar em ecologia ou de aprofundar o que Jesus poderia nos dizer sobre isso. São testemunhos de como ele nos manifestou o projeto divino que os evangelhos chamam de “reino de Deus”.
Diversas parábolas do evangelho e diversas palavras de Jesus nos mostram que a comunhão com a natureza é fundamental como caminho de intimidade com Deus. É assim que, no sermão da montanha, ele nos convida a “olhar as aves do céu e os lírios do campo” (Mateus 6, 27-28), para aprender deles a simplicidade e a viver no essencial, preocupação, hoje, tão atual com o desafio de uma sociedade que não é sustentável e não pode mais manter o mesmo ritmo de crescimento de antes. Ele nos estimula a construir a casa sobre a rocha e a abrir os olhos aos sinais do reino presentes em torno a nós no mundo. Hoje, todo o universo parece crucificado com Cristo (não são mais somente, como dizia Jon Sobrino, “os povos crucificados”). É preciso crer na ressurreição e ser testemunhas disso. Eu procuro desenvolver uma teologia ecológica da eucaristia: a ceia da partilha e da comunhão na qual a presença de Cristo se dá através dos elementos básicos da vida e da natureza.
Hoje, cada vez mais aumenta o número das pessoas que levantam a questão dos direitos dos animais e a necessidade da nossa sociedade mudar totalmente a forma como os animais são tratados como objeto para o consumo e maltratados imensamente para engordar mais rápido e para ser sacrificados com mais lucro. Quem aprofunda uma espiritualidade ecológica começa a pensar em um vegetarianismo de paz e não-violência com as outras espécies animais.
IHU On-Line - O que seria uma espiritualidade libertadora? Que grupos e/ou experiências você pode salientar nesse sentido?
Marcelo Barros - Se a espiritualidade significa “deixar-se conduzir pelo Espírito”, a experiência de muitos de nós é que podemos vivenciar isso na prática da solidariedade. Desde 1978, assessoro e acompanho a Pastoral da Terra. Tenho de confessar que, poucas vezes, vivi experiências verdadeiramente místicas, quase de êxtase, como quando acompanhei uma ou outra comunidade de lavradores sem-terra a ocupar um terreno incultivado. Cantando e orando pela madrugada, eu me senti plenamente refazendo o Êxodo bíblico e pude experimentar a presença divina junto àquele povo.
É verdade que vivo isso também quando participo de algum culto afro-brasileiro no Candomblé. Todo dia, procuro encontrar essa intimidade com Deus no sacramento e posso dizer que a encontro na escuridão e sobriedade da fé, Mas, no outro e no diferente, parece que ele se excede e grita para nós sua presença e seu amor. Todos os grupos que vivem a solidariedade como expressão de fé vivem uma espiritualidade libertadora.
Para mim, são exemplos e testemunhas de espiritualidade libertadora, o padre Júlio Lancelotti em São Paulo (ele, as irmãs beneditinas e equipe) no trabalho com o povo da rua e com as crianças que têm Aids. Continuo vibrando com o testemunho profético de irmãos como Dom Pedro Casaldáliga, Dom Tomás Balduíno e outros pastores que não descansam na sua profecia. E devo dizer com sinceridade que o MST, mesmo sendo um movimento leigo e que não tem nenhuma opção religiosa, sempre me toca pela força espiritual que sinto neles, em cada contato e em cada evento do qual participo.
(IHU On-line)
Qualidade do ar nas grandes cidades precisa de ações imediatas
Neuza Árbocz, da Envolverde especial para o Instituto Ethos*
O debate sobre a qualidade do ar nas grandes cidades brasileiras ganhou mais um elemento explosivo. Um estudo realizado pela Universidade de São Paulo (USP) aponta entre 5% e 10% das mortes consideradas por “causas naturais”, na Grande São Paulo, como resultado de danos causados à saúde por problemas relacionados à poluição atmosférica.
Esta informação é fruto de estudos realizados pelo Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da USP, e seu responsável, o médico Paulo Saldiva, alerta que, até 2040, teremos cerca de 25 mil mortes ligadas a essa causa. Ele acredita que tais mortes poderiam ser evitadas se a indústria tivesse cumprido a Resolução 315, de 2002, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
A resolução estabelecia que, a partir de janeiro de 2009, o diesel com 500 ppm (partes por milhão) de enxofre nas regiões metropolitanas e o diesel com 2.000 ppm distribuído no restante do país fossem substituídos pelo diesel com 50 ppm. Embora apenas 10% da frota brasileira utilize esse combustível, ele é o mais prejudicial à saúde, pois provoca os mesmos danos que os cigarros: doenças cardiovasculares e respiratórias, câncer e riscos aos fetos.
A Resolução 315 é parte do Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), o qual pela primeira vez teve uma de suas fases descumpridas. O programa existe desde 1986 e, graças às etapas já realizadas, os carros no Brasil emitem hoje 98% menos monóxido de carbono do que nos anos 1980 e tirou o Brasil da lista de países que utilizam chumbo tetraetila, altamente tóxico, como aditivo na gasolina.
Razões da demora
“As modificações nos motores requerem de 36 a 54 meses de trabalho e testes. Como, após o acerto da 315, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) solicitou que fossem retiradas de seu texto as especificações técnicas, porque sua definição não era atribuição do Conama, ficamos num compasso de espera”, explica Henry Joseph Jr., representante da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), durante um encontro sobre essa questão na Faculdade de Economia e Administração (FEA), da USP, no dia 9 de dezembro.
“Falar apenas no teor de enxofre é simplificar demais. As melhorias no diesel envolvem muitos outros fatores e, sem as especificações corretas, corríamos o risco de investir milhões de dólares em novos equipamentos, instalações e treinamento de pessoal e perder tudo isso depois”, justifica Frederico Kremer, da Diretoria de Abastecimento da Petrobras, também presente no evento.
“A indústria já conhecia as especificações para o diesel mais limpo, pois este é usado na Europa. Ela podia ter agido baseada nisso, antecipando-se às definições da ANP”, indigna-se José Eduardo Ismael Lutti, promotor de Justiça e Meio Ambiente do Ministério Público de São Paulo, lembrando que ter responsabilidade socioambiental - e, portanto, zelar pela saúde pública - é obrigação de quem produz.
A ANP realmente apontou as especificações européias, por meio da Resolução ANP nº.35, mas só o fez em 2007 - cinco anos após a publicação da 315. Essa demora, contudo, não gerou alerta algum de que o prazo acertado para a redução do enxofre no diesel não seria cumprido. Nem produtores do combustível nem os fabricantes dos automóveis trouxeram ao conhecimento da opinião pública a questão, ainda em tempo hábil para revertê-la.
Complicamos demais?
“Há várias questões técnicas a ser ajustadas. Para a eficácia do diesel 50 ppm é preciso, por exemplo, misturá-lo à uréia, nos postos de abastecimento. O diesel sem uréia traz pouquíssima diferença. Isso ainda não foi acertado. Mesmo assim, estaremos fornecendo o diesel 50 ppm a partir de janeiro de 2009 aos ônibus de São Paulo e Rio de Janeiro”, completa Kremer.
Como compensação pelo atraso ocorrido, os fabricantes de automóveis e os produtores de diesel firmaram um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com o Ministério do Meio Ambiente, comprometendo-se a cumprir a etapa seguinte, ou seja, fornecer o diesel a 10 ppm para carros novos, a partir de 2012, além de custear programas de inspeção veicular - responsabilidade do governo que demora a sair do papel - realizar pesquisas sobre emissões de poluentes e montar um laboratório de testes de motores, entre outras medidas.
“Temos um consenso sobre a importância da redução dos impactos dos combustíveis. Por que persiste então o contraste de nossa situação com a dos países europeus, onde se caminha para diesel totalmente livre de enxofre? Será que complicamos demais?”, indagou o professor Ricardo Abramovay, da FEA, que prometeu continuar a série de diálogos entre todas as partes para acelerar as mudanças necessárias.
“A lei, neste caso, não é o melhor guia, e sim o conhecimento das conseqüências para a saúde pública. É nele que deve estar baseado qualquer planejamento e definição de um produto”, conclui o médico Paulo Saldiva, ressaltando que o preço de erros e falhas neste campo é pago com vidas.
*Edição: Benjamin S. Gonçalves
(Instituto Ethos)
O debate sobre a qualidade do ar nas grandes cidades brasileiras ganhou mais um elemento explosivo. Um estudo realizado pela Universidade de São Paulo (USP) aponta entre 5% e 10% das mortes consideradas por “causas naturais”, na Grande São Paulo, como resultado de danos causados à saúde por problemas relacionados à poluição atmosférica.
Esta informação é fruto de estudos realizados pelo Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da USP, e seu responsável, o médico Paulo Saldiva, alerta que, até 2040, teremos cerca de 25 mil mortes ligadas a essa causa. Ele acredita que tais mortes poderiam ser evitadas se a indústria tivesse cumprido a Resolução 315, de 2002, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
A resolução estabelecia que, a partir de janeiro de 2009, o diesel com 500 ppm (partes por milhão) de enxofre nas regiões metropolitanas e o diesel com 2.000 ppm distribuído no restante do país fossem substituídos pelo diesel com 50 ppm. Embora apenas 10% da frota brasileira utilize esse combustível, ele é o mais prejudicial à saúde, pois provoca os mesmos danos que os cigarros: doenças cardiovasculares e respiratórias, câncer e riscos aos fetos.
A Resolução 315 é parte do Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), o qual pela primeira vez teve uma de suas fases descumpridas. O programa existe desde 1986 e, graças às etapas já realizadas, os carros no Brasil emitem hoje 98% menos monóxido de carbono do que nos anos 1980 e tirou o Brasil da lista de países que utilizam chumbo tetraetila, altamente tóxico, como aditivo na gasolina.
Razões da demora
“As modificações nos motores requerem de 36 a 54 meses de trabalho e testes. Como, após o acerto da 315, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) solicitou que fossem retiradas de seu texto as especificações técnicas, porque sua definição não era atribuição do Conama, ficamos num compasso de espera”, explica Henry Joseph Jr., representante da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), durante um encontro sobre essa questão na Faculdade de Economia e Administração (FEA), da USP, no dia 9 de dezembro.
“Falar apenas no teor de enxofre é simplificar demais. As melhorias no diesel envolvem muitos outros fatores e, sem as especificações corretas, corríamos o risco de investir milhões de dólares em novos equipamentos, instalações e treinamento de pessoal e perder tudo isso depois”, justifica Frederico Kremer, da Diretoria de Abastecimento da Petrobras, também presente no evento.
“A indústria já conhecia as especificações para o diesel mais limpo, pois este é usado na Europa. Ela podia ter agido baseada nisso, antecipando-se às definições da ANP”, indigna-se José Eduardo Ismael Lutti, promotor de Justiça e Meio Ambiente do Ministério Público de São Paulo, lembrando que ter responsabilidade socioambiental - e, portanto, zelar pela saúde pública - é obrigação de quem produz.
A ANP realmente apontou as especificações européias, por meio da Resolução ANP nº.35, mas só o fez em 2007 - cinco anos após a publicação da 315. Essa demora, contudo, não gerou alerta algum de que o prazo acertado para a redução do enxofre no diesel não seria cumprido. Nem produtores do combustível nem os fabricantes dos automóveis trouxeram ao conhecimento da opinião pública a questão, ainda em tempo hábil para revertê-la.
Complicamos demais?
“Há várias questões técnicas a ser ajustadas. Para a eficácia do diesel 50 ppm é preciso, por exemplo, misturá-lo à uréia, nos postos de abastecimento. O diesel sem uréia traz pouquíssima diferença. Isso ainda não foi acertado. Mesmo assim, estaremos fornecendo o diesel 50 ppm a partir de janeiro de 2009 aos ônibus de São Paulo e Rio de Janeiro”, completa Kremer.
Como compensação pelo atraso ocorrido, os fabricantes de automóveis e os produtores de diesel firmaram um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com o Ministério do Meio Ambiente, comprometendo-se a cumprir a etapa seguinte, ou seja, fornecer o diesel a 10 ppm para carros novos, a partir de 2012, além de custear programas de inspeção veicular - responsabilidade do governo que demora a sair do papel - realizar pesquisas sobre emissões de poluentes e montar um laboratório de testes de motores, entre outras medidas.
“Temos um consenso sobre a importância da redução dos impactos dos combustíveis. Por que persiste então o contraste de nossa situação com a dos países europeus, onde se caminha para diesel totalmente livre de enxofre? Será que complicamos demais?”, indagou o professor Ricardo Abramovay, da FEA, que prometeu continuar a série de diálogos entre todas as partes para acelerar as mudanças necessárias.
“A lei, neste caso, não é o melhor guia, e sim o conhecimento das conseqüências para a saúde pública. É nele que deve estar baseado qualquer planejamento e definição de um produto”, conclui o médico Paulo Saldiva, ressaltando que o preço de erros e falhas neste campo é pago com vidas.
*Edição: Benjamin S. Gonçalves
(Instituto Ethos)
Fundos soberanos, uma arma diplomática?
Christian Chavagneux - Alternatives Economiques
Um fundo de investimento soberano para defender a indústria francesa: eis um dos projetos-base apresentado pelo presidente da França, Nicolas Sarkozy, que ganhou corpo com o anúncio, no dia 20 de novembro, da formação de um “fundo de investimento nacional”. É o exemplo mais recente de uma tendência mundial: cada vez mais Estados investem na finança internacional.
A França não é a única a dotar-se de um fundo soberano: os 20 bilhões de euros do novo “fundo de investimento nacional” podem ser comparados aos 300 bilhões de dólares do fundo criado pelo Estado chinês em 2007. Os sovereign wealth funds, assim designados pelo jargão internacional, ou, à letra, os “fundos de riqueza soberana”, ou seja: as sociedades de investimento controladas pelos Estados multiplicam-se. Estão impondo-se como novos e potentes atores da finança internacional. Apenas com o seu novo fundo, a China poderia comprar sem problemas a Microsoft ou a EDF, ou a Société Génerale, o BNP Paribas, o Crédit Agricole e a AXA juntos!
A perspectiva de ver as suas grandes empresas, em parte, sob o controle indireto do Estado chinês ou russo torna os governos dos grandes países industriais muito menos propensos a comemorar as virtudes da liberalização financeira. Foi assim que a Alemanha anunciou, no fim do mês de agosto, uma futura lei que lhe permite controlar de perto os investidores estrangeiros. Esta lei chega mesmo a prever a organização de um contra-fundo soberano com os bancos alemães, destinado a fazer contra-propostas de compra de ações em caso de OPA (1) efetuada por fundos de Estados estrangeiros!
Fundos soberanos, de onde vêm?
A pequena história quis que um dos primeiros fundos soberanos tenha nascido em 1956 nas ilhas Kiribati, a sul do Havai, depois da decisão do administrador colonial britânico de então de instaurar uma taxa sobre as exportações de adubo para o país. O objetivo era poupar uma parte das receitas tiradas deste recurso não renovável para gerar rendimentos de substituição para o país quando aquele se esgotasse. O fundo, alimentado pelas receitas da taxa, gera agora 520 milhões de dólares, cerca de nove vezes o Produto Interno Bruto (PIB) local.
Desde aí, outros Estados, bem mais ricos, adotaram a mesma estratégia. A começar pelos países produtores de petróleo, que já preparam o momento em que as suas reservas de ouro negro se esgotarem. O fundo soberano mais poderoso é, assim, a Abu Dhabi Investment Authority (ADIA), que gera os 875 bilhões de dólares de investimentos financeiros dos Emirados Árabes Unidos. O maná do petróleo permitiu igualmente à Arábia Saudita, ao Kuwait, à Venezuela e à Rússia tornarem-se grandes investidores financeiros. E vê-se aparecer o Cazaquistão, o Azerbeijão, a Nigéria e Angola. A Noruega, por sua vez, desenvolveu um fundo a partir de 1990, investindo uma parte das suas receitas do petróleo; doravante esse fundo está dotado com mais de 300 bilhões de dólares.
A subida dos países asiáticos emergentes constituiu uma outra fonte de desenvolvimento destes agentes financeiros públicos. Singapura, onde dois grandes fundos que datam dos anos 70 e 80 geram perto de 45 bilhões de dólares, e a China, com os seus 300 bilhões anunciados, surgem, por grande margem, à cabeça, bem distantes dos 20 bilhões da Korea Investment Corporation, nascida em 2005.
Por fim, alguns países do Norte [sic], desejosos de nivelar os fundos dos seus regimes de reforma, criaram estruturas de investimento a longo prazo: é o caso do Future Fund, na Austrália (40 bilhões de dólares) e do Fundo de reserva para as reformas, na França (45 bilhões). No total, segundo as estimativas disponíveis, o conjunto dos fundos soberanos dispõe, hoje, de mais de 2,5 trilhões de dólares para investir nos mercados financeiros mundiais.
Quanto pesam?
O que representam estes 2,5 trilhões de dólares na finança mundial? Em comparação com o conjunto dos ativos financeiros mundiais (2), que ultrapassam os 100 trilhões de dólares, é uma gota no oceano. Comparados apenas com os mercados bolsistas, os montantes investidos representariam hoje cerca de 4% da capitalização bolsista mundial. Portanto, ainda são atores de dimensão bastante pequena quando comparados aos investidores como fundos de pensão, fundos de investimento tradicionais e companhias de seguros.
Contudo, já pesam mais que os cerca de 1,5 ou 2 trilhões de dólares gerados pelos fundos especulativos. Ora, estes mostraram que, apesar da sua dimensão relativamente limitada, podiam suscitar movimentos desestabilizadores do crescimento. Daí vem o receio de ver alguns fundos soberanos a adotar os mesmos comportamentos e a provocar ou manter movimentos de pânico financeiro, como alguns países experimentaram durante a última década. E se passarmos da escala nacional para a escala das multinacionais, o seu potencial de influência revela-se, naturalmente, ainda maior.
Porque é que assustam?
Os primeiros fundos já apareceram há meio século. Cerca de 60% dos seus capitais são investidos nos ativos sem risco (títulos do tesouro de grandes países industrializados) e 40% nos mercados mais arriscados, como as Bolsas ou os produtos financeiros mais especulativos. A sua presença no capital das grandes empresas e nos diferentes mercados não é, portanto, uma novidade. Porque é que parecem assustar mais hoje do que ontem, ao ponto de suscitar reações como a da Alemanha?
Principalmente, porque o seu peso financeiro deveria aumentar de forma considerável: 12 trilhões de dólares daqui até 2015, estima a Morgan Stanley, será mais do dobro das reservas atuais de divisas mundiais! Do lado dos produtores de petróleo, o preço do ouro negro deveria manter-se por muito tempo a um preço elevado e alimentar com moeda estrangeira as monarquias petrolíferas do Golfo e a Rússia. Do lado dos países asiáticos, as reservas crescem devido aos excedentes externos e às políticas de intervenção levadas a cabo por estes países nos mercados cambiais: para evitar a valorização das suas moedas face ao dólar americano; para defender a sua competitividade, os países asiáticos, a começar pela China, obrigam os seus bancos centrais a comprar dólares com o objetivo de sustentar a moeda americana.
Fundos soberanos, uma arma diplomática?
Podemos imaginar que os Estados de que os fundos soberanos dependem se sintam tentados a utilizar o seu novo papel financeiro como arma de política externa ou para transmitir aos seus jovens sistemas financeiros as capacidades de inovação dos nossos. Mas tudo isso fica, por enquanto, no domínio da especulação. Estes investidores também estão interessados em fazer prevalecer os critérios de boa gestão econômica nas empresas em que investiram muito dinheiro. Isto não significa que estes fundos se privem de qualquer ação política, mas fazem-no de forma mais sutil. Assim, é difícil acreditar que a escolha do fundo de Singapura GIC de investir 10 bilhões de dólares no banco suíço UBS se deva completamente ao acaso. Com cerca de 15% da quota de mercado, o UBS é o líder mundial na gestão de fortunas privadas. É precisamente uma área na qual o centro financeiro de Singapura faz imensos esforços para se impor, especialmente atraindo os investidores europeus. Aí está, portanto, um investimento que poderia servir…
De um modo geral, estas reservas de câmbio são aplicadas em produtos financeiros sem riscos e rapidamente mobilizáveis, como os títulos do Tesouro americano, pois devem servir como linha de defesa contra uma possível fuga de capitais, como se passou em vários países aquando da crise de 1997-1998. Mas o nível atual das reservas ultrapassa largamente o necessário para se proteger em caso de crise: enquanto que as normas internacionais consideram que reservas equivalentes a um quarto das importações anuais sejam suficientes, as reservas da Coréia do Sul cobrem perto de 90% e são superiores a um ano das importações da China! A possibilidade de mobilizar rapidamente o conjunto das reservas torna-se, portanto, menos determinante para estes países, enquanto que o critério da rentabilidade dos investimentos realizados se torna mais importante. Daí a vontade expressa, nestes últimos meses, por vários fundos soberanos, de consagrar mais recursos aos investimentos na Bolsa e aos produtos financeiros sofisticados, mais arriscados mas mais rentáveis.
Portanto, cada vez mais é preciso esperar para saber notícias como as dos últimos meses, que mostraram o Estado chinês investindo 3 bilhões de dólares no fundo de investimento americano Blackstone, ou o fundo de Singapura Temasek querer comprar 10% do capital do Barclays, ou ainda um fundo do Qatar colocar em cima da mesa mais de 20 bilhões de dólares para se apoderar da cadeia de hipermercados britânicos Sainsbury.
O regresso do proteccionismo financeiro?
Enquanto os bancos centrais dos países emergentes e petrolíferos se contentaram com posições de chefe de família de rendimento diminuto, com alguns investimentos dispersos e discretos na bolsa, o seu papel de financiadores era aceita. Agora que eles reivindicam publicamente a possibilidade de se tornarem proprietários de ações de grandes sociedades globalizadas com rendimentos interessantes na bolsa, o tom mudou.
Porque os governos do hemisfério Norte, para além do risco de verem passar os seus bens mais preciosos para mãos estrangeiras, suspeitam que certos países (a China, a Rússia) não são exclusivamente motivados por razões financeiras. Com efeito, podemos imaginar que alguns países rivais do plano estratégico tentam deitar a mão às empresas que produzem tecnologia avançada, como pudemos adivinhar em relação a alguns fundos americanos… Outro cenário: um fundo poderá servir para comprar uma empresa automóvel que terá como fornecedoras exclusivas as maiores empresas do país de onde o fundo é originário. Isto para já não falar da compra de empresas estratégicas, como as que produzem energia nuclear, armamento…
Utilizando as ferramentas disponíveis a qualquer investidor (offshores, produtos financeiros sofisticados…) para dissimular as partes mais importantes das suas aquisições, os fundos soberanos - à exceção do fundo norueguês apresentado como um modelo atípico - vêem-se acusados de opacidade e são objeto de uma exigência de transparência nas suas compras e nas motivações das suas escolhas. Assim, o governo americano pediu ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para trabalhar na definição de um código de boas práticas para estes fundos. Mesmo os think tanks americanos mais favoráveis à livre circulação de capitais, como o Petersen Institute for International Economics, reclamam uma longa lista de restrições que devem ser impostas. Estranhamente, nunca ninguém se tinha lembrado de exigir a mesma coisa quando o FMI e o Banco Mundial impunham aos países emergentes que abrissem aos investidores estrangeiros setores tão estratégicos como a distribuição de electricidade, água, transportes, etc.
Patriotismo econômico no hemisfério Norte contra fundos do estado no hemisfério Sul, o risco de confronto político está bem patente. O governo russo qualificou o projeto europeu de proteção do setor energético como uma reação “quase histérica”. A China já anunciou, no fim de agosto, uma nova lei sobre a concorrência cujo artigo 29 prevê uma investigação de “segurança nacional” antes de qualquer aquisição por estrangeiros de uma empresa chinesa. O cenário de propagação de um movimento de protecionismo financeiro não é de excluir.
Como escrevia, em julho passado, Lawrence Summers, antigo vice-ministro das Finanças da administração Clinton, o crescimento dos fundos soberanos coloca uma questão “profunda que mexe com a natureza do capitalismo global”. O crescimento destes fundos alimenta, com efeito, interrogações que se colocam cada vez mais, incluindo as feitas ao FMI ou ao Banco Mundial, quanto às virtudes de uma liberalização financeira levada cada vez mais longe, e das suas consequências na soberania dos Estados.
Versão atualizada do artigo “Quand les Etats investissent la finance”, (Alternatives Economiques n°262, Outubro de 2007).
Tradução de Rui Maio (Esquerda.Net)
(1) Oferta pública de aquisição: proposta efetuada por um investidor para comprar uma parte ou a totalidade das ações de uma empresa, com o objetivo de tomar o controle da mesma.
(2) Conjunto dos ativos financeiros mundiais: total da capitalização bolsista mundial e do stock das obrigações emitidas pelas empresas e pelos Estados.
(Carta Maior)
Um fundo de investimento soberano para defender a indústria francesa: eis um dos projetos-base apresentado pelo presidente da França, Nicolas Sarkozy, que ganhou corpo com o anúncio, no dia 20 de novembro, da formação de um “fundo de investimento nacional”. É o exemplo mais recente de uma tendência mundial: cada vez mais Estados investem na finança internacional.
A França não é a única a dotar-se de um fundo soberano: os 20 bilhões de euros do novo “fundo de investimento nacional” podem ser comparados aos 300 bilhões de dólares do fundo criado pelo Estado chinês em 2007. Os sovereign wealth funds, assim designados pelo jargão internacional, ou, à letra, os “fundos de riqueza soberana”, ou seja: as sociedades de investimento controladas pelos Estados multiplicam-se. Estão impondo-se como novos e potentes atores da finança internacional. Apenas com o seu novo fundo, a China poderia comprar sem problemas a Microsoft ou a EDF, ou a Société Génerale, o BNP Paribas, o Crédit Agricole e a AXA juntos!
A perspectiva de ver as suas grandes empresas, em parte, sob o controle indireto do Estado chinês ou russo torna os governos dos grandes países industriais muito menos propensos a comemorar as virtudes da liberalização financeira. Foi assim que a Alemanha anunciou, no fim do mês de agosto, uma futura lei que lhe permite controlar de perto os investidores estrangeiros. Esta lei chega mesmo a prever a organização de um contra-fundo soberano com os bancos alemães, destinado a fazer contra-propostas de compra de ações em caso de OPA (1) efetuada por fundos de Estados estrangeiros!
Fundos soberanos, de onde vêm?
A pequena história quis que um dos primeiros fundos soberanos tenha nascido em 1956 nas ilhas Kiribati, a sul do Havai, depois da decisão do administrador colonial britânico de então de instaurar uma taxa sobre as exportações de adubo para o país. O objetivo era poupar uma parte das receitas tiradas deste recurso não renovável para gerar rendimentos de substituição para o país quando aquele se esgotasse. O fundo, alimentado pelas receitas da taxa, gera agora 520 milhões de dólares, cerca de nove vezes o Produto Interno Bruto (PIB) local.
Desde aí, outros Estados, bem mais ricos, adotaram a mesma estratégia. A começar pelos países produtores de petróleo, que já preparam o momento em que as suas reservas de ouro negro se esgotarem. O fundo soberano mais poderoso é, assim, a Abu Dhabi Investment Authority (ADIA), que gera os 875 bilhões de dólares de investimentos financeiros dos Emirados Árabes Unidos. O maná do petróleo permitiu igualmente à Arábia Saudita, ao Kuwait, à Venezuela e à Rússia tornarem-se grandes investidores financeiros. E vê-se aparecer o Cazaquistão, o Azerbeijão, a Nigéria e Angola. A Noruega, por sua vez, desenvolveu um fundo a partir de 1990, investindo uma parte das suas receitas do petróleo; doravante esse fundo está dotado com mais de 300 bilhões de dólares.
A subida dos países asiáticos emergentes constituiu uma outra fonte de desenvolvimento destes agentes financeiros públicos. Singapura, onde dois grandes fundos que datam dos anos 70 e 80 geram perto de 45 bilhões de dólares, e a China, com os seus 300 bilhões anunciados, surgem, por grande margem, à cabeça, bem distantes dos 20 bilhões da Korea Investment Corporation, nascida em 2005.
Por fim, alguns países do Norte [sic], desejosos de nivelar os fundos dos seus regimes de reforma, criaram estruturas de investimento a longo prazo: é o caso do Future Fund, na Austrália (40 bilhões de dólares) e do Fundo de reserva para as reformas, na França (45 bilhões). No total, segundo as estimativas disponíveis, o conjunto dos fundos soberanos dispõe, hoje, de mais de 2,5 trilhões de dólares para investir nos mercados financeiros mundiais.
Quanto pesam?
O que representam estes 2,5 trilhões de dólares na finança mundial? Em comparação com o conjunto dos ativos financeiros mundiais (2), que ultrapassam os 100 trilhões de dólares, é uma gota no oceano. Comparados apenas com os mercados bolsistas, os montantes investidos representariam hoje cerca de 4% da capitalização bolsista mundial. Portanto, ainda são atores de dimensão bastante pequena quando comparados aos investidores como fundos de pensão, fundos de investimento tradicionais e companhias de seguros.
Contudo, já pesam mais que os cerca de 1,5 ou 2 trilhões de dólares gerados pelos fundos especulativos. Ora, estes mostraram que, apesar da sua dimensão relativamente limitada, podiam suscitar movimentos desestabilizadores do crescimento. Daí vem o receio de ver alguns fundos soberanos a adotar os mesmos comportamentos e a provocar ou manter movimentos de pânico financeiro, como alguns países experimentaram durante a última década. E se passarmos da escala nacional para a escala das multinacionais, o seu potencial de influência revela-se, naturalmente, ainda maior.
Porque é que assustam?
Os primeiros fundos já apareceram há meio século. Cerca de 60% dos seus capitais são investidos nos ativos sem risco (títulos do tesouro de grandes países industrializados) e 40% nos mercados mais arriscados, como as Bolsas ou os produtos financeiros mais especulativos. A sua presença no capital das grandes empresas e nos diferentes mercados não é, portanto, uma novidade. Porque é que parecem assustar mais hoje do que ontem, ao ponto de suscitar reações como a da Alemanha?
Principalmente, porque o seu peso financeiro deveria aumentar de forma considerável: 12 trilhões de dólares daqui até 2015, estima a Morgan Stanley, será mais do dobro das reservas atuais de divisas mundiais! Do lado dos produtores de petróleo, o preço do ouro negro deveria manter-se por muito tempo a um preço elevado e alimentar com moeda estrangeira as monarquias petrolíferas do Golfo e a Rússia. Do lado dos países asiáticos, as reservas crescem devido aos excedentes externos e às políticas de intervenção levadas a cabo por estes países nos mercados cambiais: para evitar a valorização das suas moedas face ao dólar americano; para defender a sua competitividade, os países asiáticos, a começar pela China, obrigam os seus bancos centrais a comprar dólares com o objetivo de sustentar a moeda americana.
Fundos soberanos, uma arma diplomática?
Podemos imaginar que os Estados de que os fundos soberanos dependem se sintam tentados a utilizar o seu novo papel financeiro como arma de política externa ou para transmitir aos seus jovens sistemas financeiros as capacidades de inovação dos nossos. Mas tudo isso fica, por enquanto, no domínio da especulação. Estes investidores também estão interessados em fazer prevalecer os critérios de boa gestão econômica nas empresas em que investiram muito dinheiro. Isto não significa que estes fundos se privem de qualquer ação política, mas fazem-no de forma mais sutil. Assim, é difícil acreditar que a escolha do fundo de Singapura GIC de investir 10 bilhões de dólares no banco suíço UBS se deva completamente ao acaso. Com cerca de 15% da quota de mercado, o UBS é o líder mundial na gestão de fortunas privadas. É precisamente uma área na qual o centro financeiro de Singapura faz imensos esforços para se impor, especialmente atraindo os investidores europeus. Aí está, portanto, um investimento que poderia servir…
De um modo geral, estas reservas de câmbio são aplicadas em produtos financeiros sem riscos e rapidamente mobilizáveis, como os títulos do Tesouro americano, pois devem servir como linha de defesa contra uma possível fuga de capitais, como se passou em vários países aquando da crise de 1997-1998. Mas o nível atual das reservas ultrapassa largamente o necessário para se proteger em caso de crise: enquanto que as normas internacionais consideram que reservas equivalentes a um quarto das importações anuais sejam suficientes, as reservas da Coréia do Sul cobrem perto de 90% e são superiores a um ano das importações da China! A possibilidade de mobilizar rapidamente o conjunto das reservas torna-se, portanto, menos determinante para estes países, enquanto que o critério da rentabilidade dos investimentos realizados se torna mais importante. Daí a vontade expressa, nestes últimos meses, por vários fundos soberanos, de consagrar mais recursos aos investimentos na Bolsa e aos produtos financeiros sofisticados, mais arriscados mas mais rentáveis.
Portanto, cada vez mais é preciso esperar para saber notícias como as dos últimos meses, que mostraram o Estado chinês investindo 3 bilhões de dólares no fundo de investimento americano Blackstone, ou o fundo de Singapura Temasek querer comprar 10% do capital do Barclays, ou ainda um fundo do Qatar colocar em cima da mesa mais de 20 bilhões de dólares para se apoderar da cadeia de hipermercados britânicos Sainsbury.
O regresso do proteccionismo financeiro?
Enquanto os bancos centrais dos países emergentes e petrolíferos se contentaram com posições de chefe de família de rendimento diminuto, com alguns investimentos dispersos e discretos na bolsa, o seu papel de financiadores era aceita. Agora que eles reivindicam publicamente a possibilidade de se tornarem proprietários de ações de grandes sociedades globalizadas com rendimentos interessantes na bolsa, o tom mudou.
Porque os governos do hemisfério Norte, para além do risco de verem passar os seus bens mais preciosos para mãos estrangeiras, suspeitam que certos países (a China, a Rússia) não são exclusivamente motivados por razões financeiras. Com efeito, podemos imaginar que alguns países rivais do plano estratégico tentam deitar a mão às empresas que produzem tecnologia avançada, como pudemos adivinhar em relação a alguns fundos americanos… Outro cenário: um fundo poderá servir para comprar uma empresa automóvel que terá como fornecedoras exclusivas as maiores empresas do país de onde o fundo é originário. Isto para já não falar da compra de empresas estratégicas, como as que produzem energia nuclear, armamento…
Utilizando as ferramentas disponíveis a qualquer investidor (offshores, produtos financeiros sofisticados…) para dissimular as partes mais importantes das suas aquisições, os fundos soberanos - à exceção do fundo norueguês apresentado como um modelo atípico - vêem-se acusados de opacidade e são objeto de uma exigência de transparência nas suas compras e nas motivações das suas escolhas. Assim, o governo americano pediu ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para trabalhar na definição de um código de boas práticas para estes fundos. Mesmo os think tanks americanos mais favoráveis à livre circulação de capitais, como o Petersen Institute for International Economics, reclamam uma longa lista de restrições que devem ser impostas. Estranhamente, nunca ninguém se tinha lembrado de exigir a mesma coisa quando o FMI e o Banco Mundial impunham aos países emergentes que abrissem aos investidores estrangeiros setores tão estratégicos como a distribuição de electricidade, água, transportes, etc.
Patriotismo econômico no hemisfério Norte contra fundos do estado no hemisfério Sul, o risco de confronto político está bem patente. O governo russo qualificou o projeto europeu de proteção do setor energético como uma reação “quase histérica”. A China já anunciou, no fim de agosto, uma nova lei sobre a concorrência cujo artigo 29 prevê uma investigação de “segurança nacional” antes de qualquer aquisição por estrangeiros de uma empresa chinesa. O cenário de propagação de um movimento de protecionismo financeiro não é de excluir.
Como escrevia, em julho passado, Lawrence Summers, antigo vice-ministro das Finanças da administração Clinton, o crescimento dos fundos soberanos coloca uma questão “profunda que mexe com a natureza do capitalismo global”. O crescimento destes fundos alimenta, com efeito, interrogações que se colocam cada vez mais, incluindo as feitas ao FMI ou ao Banco Mundial, quanto às virtudes de uma liberalização financeira levada cada vez mais longe, e das suas consequências na soberania dos Estados.
Versão atualizada do artigo “Quand les Etats investissent la finance”, (Alternatives Economiques n°262, Outubro de 2007).
Tradução de Rui Maio (Esquerda.Net)
(1) Oferta pública de aquisição: proposta efetuada por um investidor para comprar uma parte ou a totalidade das ações de uma empresa, com o objetivo de tomar o controle da mesma.
(2) Conjunto dos ativos financeiros mundiais: total da capitalização bolsista mundial e do stock das obrigações emitidas pelas empresas e pelos Estados.
(Carta Maior)
Será que o pilar ambiental foi sobrevalorizado?
Michael Hopkins*, para a revista Im))pactus
Al Gore efectuou um óptimo trabalho ao conseguir trazer o debate ambiental para a ordem do dia. Mas se, ao menos, tivesse feito o mesmo esforço em relação a outra questão fundamental - a área social - quando teve oportunidade, o mundo seria actualmente um local bem melhor. Estou-me a referir às eleições presidenciais de 2000, onde acabou por desistir cedo demais, mesmo após ter obtido a maioria dos votos e sabendo que a contagem dos votos na Flórida tinha sido manipulada. Se tivesse continuado a lutar, recusando aceitar a derrota até à recontagem dos votos, então o maior desastre dos últimos sete anos - a guerra do Iraque, com um custo avaliado em 1.5 mil milhões de dólares - não teria acontecido. O 11 de Setembro teria ocorrido, mas estaríamos numa posição moral bem mais confortável, em relação ao terrorismo, do que aquela em que nos encontramos neste momento devido à presença desastrosa de George W. Bush na Casa Branca. É a isto que me refiro quando relembro que as questões de cariz social não devem ser completamente dominadas pelo debate ambiental.
Um e-mail que recebi recentemente estava imbuído da mesma linha de raciocínio. No grupo de discussão de RSE, CSR Chicks, a Ulrika escreveu “Olá membros do grupo de discussão, será que algum de vocês me saberá aconselhar relativamente a um seminário ou conferência de boa qualidade sobre Investimento Socialmente Responsável (ISR)? O ISR parece estar muito centrado em “Investimentos Ecológicos” e em questões ambientais. O que eu procuro é uma conferência acerca de ISR, mas centrada em direitos humanos, direitos laborais, corrupção e também sobre ambiente.”
Num recente inquérito mundial às empresas sobre questões politicossociais, da autoria da McKinsey[i], mais de metade dos participantes escolheu o ambiente, incluindo as alterações climáticas, como um dos três temas que mais irá atrair a atenção dos políticos e do público nos próximos cinco anos, em comparação com 31% no anterior inquérito.
Parece claro que o aquecimento global é um dos principais temas do momento. Curiosamente, a comprovação de que as emissões de carbono contribuem para o aquecimento global ainda decorre. Por exemplo[ii], John Christy, Professor de Ciências da Atmosfera na Universidade de Alabama, é de opinião que a ciência não é totalmente fidedigna, até porque fazer previsões é uma “ciência” difícil e salienta que “quantificar o aquecimento que terá ocorrido devido ao aumento da emissão de gases de efeito de estufa e afirmar aquilo que poderemos esperar no futuro, são respostas ainda repletas de enorme incerteza, na minha opinião”.
A minha opinião, tal como a de muitos outros, é a de que se trata de uma ameaça demasiado importante e, por isso, se deve destinar 1% do PIB, anualmente, para tornar o nosso planeta num local mais ecológico, tal como foi sugerido pelo Relatório Stern. Mas sejamos racionais acerca deste tema e actuemos onde possam ocorrer os maiores impactos.
A preocupação com o ambiente não é algo de novo. Os avisos de catástrofe mundial vieram da equipa liderada por Donella Meadows no livro “Os Limites do Crescimento” publicado em 1971. Mas os seus autores tiveram o cuidado de referir que existiam outras catástrofes e a falecida D. Meadows, com quem tive o privilégio de trabalhar, era nessa altura uma entusiasta defensora da redução da pobreza na Índia.
As questões ambientais são algo sobre o qual é fácil entusiasmarmo-nos. Durante a Guerra Fria, nos anos 70, a única instituição internacional criada para estabelecer uma ponte entre o Ocidente e o Oriente foi o Instituto Internacional para a Análise de Sistemas Aplicados (IIASA)[iii]. Ficou sedeada nos arredores de Viena, com o objectivo de aplicar a técnica de análise de sistemas aos problemas ambientais transfronteiriços - um sector considerado, na época, como não político! Actualmente, como é óbvio, esta instituição trabalha na criação de modelos de aquecimento global e 17 cientistas do IIASA foram os autores e revisores do Quarto Relatório de Avaliação do Painel Internacional sobre as Alterações Climáticas (PIAC) concluído recentemente.
Como os leitores saberão, defendi recentemente num artigo mensal[iv] que devemos escolher cuidadosamente as nossas catástrofes mundiais! Escrevi o seguinte: “… na tentativa de solucionar a potencial catástrofe do Aquecimento Global, estar-se-á a desviar a atenção da catástrofe da pobreza e do subdesenvolvimento?”
Pode a RSE ser o motor?
Acredito que a RSE é o motor que poderá estabelecer a ligação entre todos estes conceitos. A minha definição de RSE é actualmente a seguinte: “tratar os principais stakeholders das organizações de uma forma responsável”. Não a vou aqui defender dado que lhe dediquei um longo capítulo no meu livro “CSR and International Development - Is Business the Solution” (Earthscan, Londres, 2007)[v].
Assim, a RSE abrange a maioria dos stakeholders e as principais áreas de âmbito social, económico e ambiental. Em parte alguma, até à data, é possível encontrar uma avaliação tão abrangente sobre quais devem ser as prioridades. Para as empresas é muitas vezes evidente quem são os seus principais stakeholders e quais devem ser as suas prioridades de RSE. No entanto, as prioridades perdem clareza quando as empresas tentam ir ao encontro das preocupações da comunidade mais vasta na qual se inserem e desejam saber qual a forma correcta de cuidar dos seus colaboradores que muitas vezes se encontram em locais remotos e inóspitos.
De facto, as grandes empresas, tal como já referi inúmeras vezes nos nossos artigos mensais, têm responsabilidades que vão muito para além das suas habituais dietas. Podem também, em alguns casos (consultar o artigo mensal, na MHCI, sobre RSE e o Complexo Militar Industrial), afectar de forma negativa questões fundamentais. Logo, a minha principal tese é a de que as grandes empresas não deviam ir ao extremo do entusiasmo em relação às questões ambientais sem também terem em consideração as principais questões sociais e, como é óbvio, as suas próprias questões económicas. Geralmente, não se pretende que as empresas deixem de ter lucro pois, como é evidente, acabariam por definhar e morrer, o que não tem qualquer utilidade para os apoiantes da RSE. Que questões sociais são estas? Quais são as implicações entre estar centrado nas questões ambientais comparativamente às questões fundamentais de cariz social? Qual a relação entre a degradação ambiental e a precariedade social e a pobreza?
Apelo a todos aqueles que se preocupam com a futura catástrofe provocada pelas Alterações Climáticas, para que incluam não só medidas de cariz Ambiental mas também de Desenvolvimento Socio-Económico, dado que ambas as áreas estão intimamente interligadas e caso não sejam tomadas medidas haverá consequências gravosas para todos nós.
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Notas:
[i] Avaliar o impacto das questões de cariz social: A McKinsey Global Survey, Novembro, 2007
[ii] Citado pela BBC a 13 de Novembro de 2007.
[iii] ] http://www.iiasa.ac.at/docs/history.html?sb=3
[iv] MHCi Monthly feature consulte www.mhcinternational.com
[v] Michael Hopkins: CSR and International Development - Is Business the Solution? (Earthscan, Londres, Dezembro 2006, cuja versão revista será publicada pela Earthscan em Outubro de 2008).
Michael Hopkins é Professor de Responsabilidade Social Empresarial na Middlesex University Business School e Director Executivo da consultora de RSE e grupo de reflexão MHC International Ltd.. Entre os seus livros já publicados encontram-se “The Planetary Bargain: Corporate Social Responsibility Matters” (Earthscan, 2003) e “Corporate Social Responsibility and International Development: Is Business the Solution?” (Earthscan, 2006).
Al Gore efectuou um óptimo trabalho ao conseguir trazer o debate ambiental para a ordem do dia. Mas se, ao menos, tivesse feito o mesmo esforço em relação a outra questão fundamental - a área social - quando teve oportunidade, o mundo seria actualmente um local bem melhor. Estou-me a referir às eleições presidenciais de 2000, onde acabou por desistir cedo demais, mesmo após ter obtido a maioria dos votos e sabendo que a contagem dos votos na Flórida tinha sido manipulada. Se tivesse continuado a lutar, recusando aceitar a derrota até à recontagem dos votos, então o maior desastre dos últimos sete anos - a guerra do Iraque, com um custo avaliado em 1.5 mil milhões de dólares - não teria acontecido. O 11 de Setembro teria ocorrido, mas estaríamos numa posição moral bem mais confortável, em relação ao terrorismo, do que aquela em que nos encontramos neste momento devido à presença desastrosa de George W. Bush na Casa Branca. É a isto que me refiro quando relembro que as questões de cariz social não devem ser completamente dominadas pelo debate ambiental.
Um e-mail que recebi recentemente estava imbuído da mesma linha de raciocínio. No grupo de discussão de RSE, CSR Chicks, a Ulrika escreveu “Olá membros do grupo de discussão, será que algum de vocês me saberá aconselhar relativamente a um seminário ou conferência de boa qualidade sobre Investimento Socialmente Responsável (ISR)? O ISR parece estar muito centrado em “Investimentos Ecológicos” e em questões ambientais. O que eu procuro é uma conferência acerca de ISR, mas centrada em direitos humanos, direitos laborais, corrupção e também sobre ambiente.”
Num recente inquérito mundial às empresas sobre questões politicossociais, da autoria da McKinsey[i], mais de metade dos participantes escolheu o ambiente, incluindo as alterações climáticas, como um dos três temas que mais irá atrair a atenção dos políticos e do público nos próximos cinco anos, em comparação com 31% no anterior inquérito.
Parece claro que o aquecimento global é um dos principais temas do momento. Curiosamente, a comprovação de que as emissões de carbono contribuem para o aquecimento global ainda decorre. Por exemplo[ii], John Christy, Professor de Ciências da Atmosfera na Universidade de Alabama, é de opinião que a ciência não é totalmente fidedigna, até porque fazer previsões é uma “ciência” difícil e salienta que “quantificar o aquecimento que terá ocorrido devido ao aumento da emissão de gases de efeito de estufa e afirmar aquilo que poderemos esperar no futuro, são respostas ainda repletas de enorme incerteza, na minha opinião”.
A minha opinião, tal como a de muitos outros, é a de que se trata de uma ameaça demasiado importante e, por isso, se deve destinar 1% do PIB, anualmente, para tornar o nosso planeta num local mais ecológico, tal como foi sugerido pelo Relatório Stern. Mas sejamos racionais acerca deste tema e actuemos onde possam ocorrer os maiores impactos.
A preocupação com o ambiente não é algo de novo. Os avisos de catástrofe mundial vieram da equipa liderada por Donella Meadows no livro “Os Limites do Crescimento” publicado em 1971. Mas os seus autores tiveram o cuidado de referir que existiam outras catástrofes e a falecida D. Meadows, com quem tive o privilégio de trabalhar, era nessa altura uma entusiasta defensora da redução da pobreza na Índia.
As questões ambientais são algo sobre o qual é fácil entusiasmarmo-nos. Durante a Guerra Fria, nos anos 70, a única instituição internacional criada para estabelecer uma ponte entre o Ocidente e o Oriente foi o Instituto Internacional para a Análise de Sistemas Aplicados (IIASA)[iii]. Ficou sedeada nos arredores de Viena, com o objectivo de aplicar a técnica de análise de sistemas aos problemas ambientais transfronteiriços - um sector considerado, na época, como não político! Actualmente, como é óbvio, esta instituição trabalha na criação de modelos de aquecimento global e 17 cientistas do IIASA foram os autores e revisores do Quarto Relatório de Avaliação do Painel Internacional sobre as Alterações Climáticas (PIAC) concluído recentemente.
Como os leitores saberão, defendi recentemente num artigo mensal[iv] que devemos escolher cuidadosamente as nossas catástrofes mundiais! Escrevi o seguinte: “… na tentativa de solucionar a potencial catástrofe do Aquecimento Global, estar-se-á a desviar a atenção da catástrofe da pobreza e do subdesenvolvimento?”
Pode a RSE ser o motor?
Acredito que a RSE é o motor que poderá estabelecer a ligação entre todos estes conceitos. A minha definição de RSE é actualmente a seguinte: “tratar os principais stakeholders das organizações de uma forma responsável”. Não a vou aqui defender dado que lhe dediquei um longo capítulo no meu livro “CSR and International Development - Is Business the Solution” (Earthscan, Londres, 2007)[v].
Assim, a RSE abrange a maioria dos stakeholders e as principais áreas de âmbito social, económico e ambiental. Em parte alguma, até à data, é possível encontrar uma avaliação tão abrangente sobre quais devem ser as prioridades. Para as empresas é muitas vezes evidente quem são os seus principais stakeholders e quais devem ser as suas prioridades de RSE. No entanto, as prioridades perdem clareza quando as empresas tentam ir ao encontro das preocupações da comunidade mais vasta na qual se inserem e desejam saber qual a forma correcta de cuidar dos seus colaboradores que muitas vezes se encontram em locais remotos e inóspitos.
De facto, as grandes empresas, tal como já referi inúmeras vezes nos nossos artigos mensais, têm responsabilidades que vão muito para além das suas habituais dietas. Podem também, em alguns casos (consultar o artigo mensal, na MHCI, sobre RSE e o Complexo Militar Industrial), afectar de forma negativa questões fundamentais. Logo, a minha principal tese é a de que as grandes empresas não deviam ir ao extremo do entusiasmo em relação às questões ambientais sem também terem em consideração as principais questões sociais e, como é óbvio, as suas próprias questões económicas. Geralmente, não se pretende que as empresas deixem de ter lucro pois, como é evidente, acabariam por definhar e morrer, o que não tem qualquer utilidade para os apoiantes da RSE. Que questões sociais são estas? Quais são as implicações entre estar centrado nas questões ambientais comparativamente às questões fundamentais de cariz social? Qual a relação entre a degradação ambiental e a precariedade social e a pobreza?
Apelo a todos aqueles que se preocupam com a futura catástrofe provocada pelas Alterações Climáticas, para que incluam não só medidas de cariz Ambiental mas também de Desenvolvimento Socio-Económico, dado que ambas as áreas estão intimamente interligadas e caso não sejam tomadas medidas haverá consequências gravosas para todos nós.
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Notas:
[i] Avaliar o impacto das questões de cariz social: A McKinsey Global Survey, Novembro, 2007
[ii] Citado pela BBC a 13 de Novembro de 2007.
[iii] ] http://www.iiasa.ac.at/docs/history.html?sb=3
[iv] MHCi Monthly feature consulte www.mhcinternational.com
[v] Michael Hopkins: CSR and International Development - Is Business the Solution? (Earthscan, Londres, Dezembro 2006, cuja versão revista será publicada pela Earthscan em Outubro de 2008).
Michael Hopkins é Professor de Responsabilidade Social Empresarial na Middlesex University Business School e Director Executivo da consultora de RSE e grupo de reflexão MHC International Ltd.. Entre os seus livros já publicados encontram-se “The Planetary Bargain: Corporate Social Responsibility Matters” (Earthscan, 2003) e “Corporate Social Responsibility and International Development: Is Business the Solution?” (Earthscan, 2006).
“A economia dos Estados Unidos é insustentável”
Com uma crescente onda de demissões nas empresas mais importantes do planeta como pano de fundo, os integrantes do G-20 elaboraram um plano de ação para superar a derrocada global. Mesmo que criticada por empenhar-se em evitar decisões concretas, a declaração emitida na semana passada aponta no sentido de limitar os efeitos de recessão das economias centrais e emergentes mediante uma reforma do sistema financeiro mundial - em termos de regulação e transparência -, um forte estímulo das economias nacionais com políticas fiscais e monetárias, e uma maior participação dos países emergentes na tomada de decisões políticas.
Neste contexto, Cash [suplemento do jornal Pagina 12] dialogou com o economista marxista Gérard Dumenil durante a sua visita a Buenos Aires, onde participou do IV Colóquio do Sepla. O pesquisador do Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS), que há anos vem chamando a atenção sobre a “iminência” da atual crise, opinou que suas causas centrais são os desequilíbrios da trajetória econômica dos Estados Unidos, a aceleração de mecanismos financeiros baseados num endividamento “insustentável” e o “financiamento dos desequilíbrios da maior potência por parte do resto do mundo”.
Segue a entrevista concedida a Natalia Aruguete e publicada no jornal argentino Página 12. A tradução é do Cepat.
Cash - Há anos vocês vêm apresentando a possibilidade de uma grande crise financeira. Vê diferenças entre o que pensava que poderia acontecer e a forma como finalmente deslanchou?
Gérard Dumenil - Na crise atual há dois aspectos. O primeiro é a situação econômica dos Estados Unidos. Este aspecto previa há alguns anos. O crescimento desse país se caracteriza por um déficit crescente do comércio exterior: compra mais do que o mundo e do que vende ao resto do mundo. Como conseqüência, o mundo financia cada ano mais a economia norte-americana.
Cash - Como a financia?
GD - Com investimentos financeiros. Compra bônus do Tesouro e ações. Já em 2006 víamos que essa trajetória era insustentável, mas agora é muito mais. Ao desequilíbrio exterior se agregam os desequilíbrios internos, em particular, o crescimento da dívida habitacional.
Cash - Qual é o segundo aspecto da atual crise?
GD - A inovação financeira. É o mais evidente. Entre 2001 e 2006 se aceleraram novos mecanismos financeiros, em particular os créditos subprime - o que significou o empréstimo de dinheiro a pessoas que não podem pagá-los -, com mecanismos de titularização. Por trás dos subprime há seguradoras. Se o tomador de crédito não pagar, outra empresa pagará em seu lugar. É um sistema. Mas, há outros mecanismos complexos: o que os mercados fazem.
Cash - A que se refere com “o que os mercados fazem”?
GD - Ao fato de comprar ações a um determinado prazo ou vender proteção. Por exemplo, uma empresa vai utilizar cobre numa nova fábrica. Seus proprietários fazem o investimento. Sabem que nos próximos dez anos vão necessitar do insumo e que o preço do cobre é muito importante para eles. Vão falar com um fundo de cobertura cujo trabalho é vender cobre a um determinado preço em um, dois ou dez anos. Esta contratação significa proteção, já que esta empresa terá o cobre a esse preço quando talvez no mercado seja mais caro ou mais barato. É um mecanismo especulativo onde se trabalho com uma enorme incerteza. Mas os mercados representam uma infinidade de outros mecanismos.
Cash - Por exemplo?
GD - Há taxas de juros a curto e longo prazos, mas os níveis são diferentes. Por exemplo, no Brasil a taxa de juro é muito elevada. Os bancos pedem emprestado num país com taxa de juro baixa e emprestam em um país com taxa de juro elevada. O risco é cambial, porque a taxa de câmbio do real pode baixar e ter perdas de 30% do valor do investimento. É muito difícil controlar estes mecanismos financeiros e saber exatamente o que acontece. Não há sistema de controle, nem acompanhamento estatístico que possa informar o que irá acontecer. Mas esta é a base do atual sistema financeiro.
Cash - Entre estes mecanismos, que papel exerceu a “inovação financeira” nesta crise?
GD - O caráter insustentável da trajetória da economia dos Estados Unidos tinha que aparecer de certa maneira e isso aconteceu através de uma crise financeira, porque utilizaram o boom imobiliário para prolongar o crescimento econômico durante 4 ou 5 anos. A recessão de 2001 foi o ensaio geral da atual. Foi muito difícil para os norte-americanos sair dessa situação, que significou contração da atividade e crise das Bolsas.
Cash - E como conseguiram sair?
GD - Através da enorme queda da taxa de juro do Federal Reserve (FED) e da nova onda de investimentos na área de habitação através da titularização. Mas essa maneira de prolongar a sua trajetória positiva da economia também se tornou insustentável porque é impossível basear o crescimento de um país sobre o endividamento de casas que não podem pagar. Com uma particularidade: em 2006, mais da metade dos créditos “podres” foram vendidos ao resto do mundo. Alan Greenspan, quando era presidente do FED, dizia: “A titularização está muito bem porque dilui o risco. Os bancos não conservam os créditos podres, vendem-nos. Em particular exportam o risco ao Japão, à Europa”. Assim exportaram a sua crise.
Cash - O consumo das famílias é uma parte significativa dos ingressos dos Estados Unidos. Acredita que poderiam ter ensaiado políticas que apontariam este setor para sair desta crise?
GD - O problema não é de falta de demanda. Entre 2001 e 2007, o problema foi de excesso de demanda. No conjunto, os lares desse país gastam de forma desenfreada, ainda que seja um esquema heterogêneo, já que o poder de compra de 95% da população está estancado desde os anos 1970. Mas, considerando o conjunto das famílias, consomem mais do que ganham. Assim, a sua taxa de poupança é negativa.
Cash - Calcula-se que o custo da crise até outubro foi de aproximadamente 4,5 bilhões de dólares, contando Estados Unidos, Europa, Japão e Canadá. É possível estimar qual será o montante desta crise?
GD - É difícil de calcular. Quando falamos do “custo”, falamos de fatores heterogêneos: emprestar dinheiro não é a mesma coisa que comprar uma empresa que se nacionaliza ou comprar uma dívida podre. Nacionalizar significa que o Tesouro pode comprar as ações de um banco a um valor baixo. É difícil saber quanto custará a solvência do sistema porque com os créditos se pode comprar, mas também inclui a modalidade do Plano Paulson (secretário do Tesouro) que era comprar os “créditos podres” dos bancos.
Cash - Aproximadamente 10 milhões de famílias perderão suas casas. O que iria acontecer caso tomassem medidas de ajuda a essas pessoas em vez de salvar os bancos?
GD - Essa decisão deveria ter sido tomada mais cedo. Agora estamos numa situação de extrema urgência. Evitar uma crise como a do subprime era muito simples. Necessitava-se de uma decisão da Casa Branca, mas não o fez. Na França, o subprime não seria possível. Uma pessoa não pode pedir um crédito pelo qual tenha que pagar mais de 30% de seu ingresso mensal. Nos Estados Unidos, uma família paga até 80% de seu ingresso para reembolsar e pagar os juros.
Cash - Por que acredita que não se tomou essa decisão?
GD - Porque assim ganharam um dinheiro incrível entre 2001 e 2006. A taxa de lucros dos bancos nesse período disparou completamente. A outra razão é que necessitavam desse aumento dos créditos da habitação para sair da crise de 2001. Greenspan ficou muito preocupado ao ver o aumento da taxa de juro do FED, mas as taxas dos créditos hipotecários não subiram. Era a primeira vez que isto acontecia. A explicação de Greenspan foi: “Eu aumento o custo do crédito aos bancos e estes não o repassam”. Porque podem pedir dinheiro emprestado ao resto do mundo e o resto do mundo está disponível para emprestar com uma taxa de juro menos elevada. E Greenspan descobriu que não podia controlar a taxa de juro dos créditos hipotecários.
Cash - Há certa preocupação com a possibilidade de que esta crise derive em protecionismo comercial. Acredita que alguns países irão recorrer a políticas deste tipo?
GD - Depois desta crise, os Estados Unidos necessitam corrigir sua trajetória econômica. Isso significa sair de muitos aspectos do neoliberalismo. O protecionismo é uma questão, mas o problema é que o poder econômico norte-americano se baseia em suas empresas transacionais, que necessitam do livre comércio, da livre mobilidade do capital, ao passo que a trajetória da economia é incompatível com a livre mobilidade do capital.
Cash - E como resolvem essa incompatibilidade?
GD - Enganando. Por exemplo, o Exército norte-americano decide comprar aviões europeus, o governo diz que não. Ou se antes da crise a China queria comprar uma empresa de petróleo, o governo dizia: “Não. Segurança nacional”. Tudo isto antes da crise. Agora é diferente porque estão numa situação terrível e são mais flexíveis.
Cash - Fala-se da importante dívida externa dos Estados Unidos. No entanto, você disse que não se trata exatamente de uma dívida. Por quê?
GD - Não é uma dívida. A expressão correta é que o resto do mundo financia a economia norte-americana. Financiar significa ter ações, bônus do Tesouro. Esses títulos são uma dívida. Mas uma ação não é uma dívida. Mesmo que isto não muda o fato de que o resto do mundo tem um comportamento mais ou menos rentista.
Cash - Em que sentido?
GD - Por exemplo, um banco central como o da China comprava bônus do Tesouro a uma taxa de juro de 5% ao ano. Mas, quando os Estados Unidos fazem inversões diretas em outros países conseguem taxas de rendimento de 15% ou 20%. O resto do mundo financiava a economia norte-americana de forma bastante barata em termos comparativos. Mas agora estamos entrando numa nova fase porque o resto do mundo quer entrar no coração do animal e também se beneficiar de rendimentos elevados. A China, por exemplo, vai usar seus dólares para fazer inversões ativas, não rentistas, entrando nas grandes entidades norte-americanas e com o mesmo tipo de rendimento no mundo. Isso é uma situação nova.
Cash - Diz-se que a China financiará a crise de Wall Street pela quantidade de bônus do Tesouro que possui. Você acredita que a China pode desbancar os Estados Unidos de seu papel de maior potência mundial?
GD - Não estamos nessa situação, de forma alguma. A China desempenha um papel muito importante agora porque tem enormes reservas de divisas (dólares e euros) por seu superávit comercial, que não é outra coisa que o déficit comercial norte-americano.
Cash - O problema é que muitos países emergentes têm problemas de divisas. Quem poderia ajudá-los?
GD - O Fundo Monetário Internacional, mas seus recursos são muito limitados. Diz-se que a China deve emprestar dinheiro ao Fundo. A China responde: “Estamos de acordo, mas necessitamos de um novo sistema financeiro internacional”, no qual outras moedas, não apenas o dólar, exerçam um papel importante.
Cash - Antes desta crise você afirmou que a América Latina era a oportunidade para a mudança. Continua a pensar assim?
GD - Sim, porque provavelmente depois da crise tenhamos um processo de diferenciação em escala mundial. O mundo não é uniforme. Os Estados Unidos vão se recuperar de alguma maneira, a Europa talvez de outra e a China de maneira completamente diferente. A América Latina foi historicamente uma região de resistência e escolheu governos de esquerda. O problema é o que acontece com governos de esquerda. Por exemplo, o caso do Brasil.
Cash - Por que alude ao caso do Brasil?
GD - Porque a política do Brasil é 100% neoliberal. O caso da Argentina é particular porque, depois de uma década de loucura neoliberal, teve esta crise terrível de 2001 e saiu de forma bastante hábil. Na França, uma pessoa de esquerda bastante radical considera que os três países andinos - Venezuela, Equador e Bolívia - representam uma esperança, porque escolheram governos de esquerda que pensam na formação de um bloco. Provavelmente, o caso mais simples é o do Equador, porque é um governo muito sério com uma vontade nacional de recuperação dos recursos do país, de alcançar uma mudança social. E tem, de certa maneira, um grau de harmonia social.
Cash - E o caso da Bolívia?
GD - É muito difícil. Muita gente na França pensa que a Bolívia está construindo o socialismo. Há um governo comprometido com uma mudança social, em recuperar seus recursos, desenvolver o país, ainda que com uma alta tensão social. E na Venezuela, o povo basicamente apóia Chávez, mas também há uma burguesia com uma relação muito difícil com o governo.
Cash - Isso dificulta a mudança?
GD - É um país com uma burocracia muito grande. O próprio Chávez tem muitas dificuldades para controlar essa burocracia.
Cash - A situação na região hoje é mais complexa do que há dois anos?
GD - Exatamente. E a Argentina estava em situação de sair da crise e o fez de forma formidável. Não sair do neoliberalismo, mas acabar realmente com esta variedade louca do neoliberalismo. Para mim, a América Latina segue representando uma esperança. É um continente de tradição de luta.
(IHU On-Line)
Neste contexto, Cash [suplemento do jornal Pagina 12] dialogou com o economista marxista Gérard Dumenil durante a sua visita a Buenos Aires, onde participou do IV Colóquio do Sepla. O pesquisador do Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS), que há anos vem chamando a atenção sobre a “iminência” da atual crise, opinou que suas causas centrais são os desequilíbrios da trajetória econômica dos Estados Unidos, a aceleração de mecanismos financeiros baseados num endividamento “insustentável” e o “financiamento dos desequilíbrios da maior potência por parte do resto do mundo”.
Segue a entrevista concedida a Natalia Aruguete e publicada no jornal argentino Página 12. A tradução é do Cepat.
Cash - Há anos vocês vêm apresentando a possibilidade de uma grande crise financeira. Vê diferenças entre o que pensava que poderia acontecer e a forma como finalmente deslanchou?
Gérard Dumenil - Na crise atual há dois aspectos. O primeiro é a situação econômica dos Estados Unidos. Este aspecto previa há alguns anos. O crescimento desse país se caracteriza por um déficit crescente do comércio exterior: compra mais do que o mundo e do que vende ao resto do mundo. Como conseqüência, o mundo financia cada ano mais a economia norte-americana.
Cash - Como a financia?
GD - Com investimentos financeiros. Compra bônus do Tesouro e ações. Já em 2006 víamos que essa trajetória era insustentável, mas agora é muito mais. Ao desequilíbrio exterior se agregam os desequilíbrios internos, em particular, o crescimento da dívida habitacional.
Cash - Qual é o segundo aspecto da atual crise?
GD - A inovação financeira. É o mais evidente. Entre 2001 e 2006 se aceleraram novos mecanismos financeiros, em particular os créditos subprime - o que significou o empréstimo de dinheiro a pessoas que não podem pagá-los -, com mecanismos de titularização. Por trás dos subprime há seguradoras. Se o tomador de crédito não pagar, outra empresa pagará em seu lugar. É um sistema. Mas, há outros mecanismos complexos: o que os mercados fazem.
Cash - A que se refere com “o que os mercados fazem”?
GD - Ao fato de comprar ações a um determinado prazo ou vender proteção. Por exemplo, uma empresa vai utilizar cobre numa nova fábrica. Seus proprietários fazem o investimento. Sabem que nos próximos dez anos vão necessitar do insumo e que o preço do cobre é muito importante para eles. Vão falar com um fundo de cobertura cujo trabalho é vender cobre a um determinado preço em um, dois ou dez anos. Esta contratação significa proteção, já que esta empresa terá o cobre a esse preço quando talvez no mercado seja mais caro ou mais barato. É um mecanismo especulativo onde se trabalho com uma enorme incerteza. Mas os mercados representam uma infinidade de outros mecanismos.
Cash - Por exemplo?
GD - Há taxas de juros a curto e longo prazos, mas os níveis são diferentes. Por exemplo, no Brasil a taxa de juro é muito elevada. Os bancos pedem emprestado num país com taxa de juro baixa e emprestam em um país com taxa de juro elevada. O risco é cambial, porque a taxa de câmbio do real pode baixar e ter perdas de 30% do valor do investimento. É muito difícil controlar estes mecanismos financeiros e saber exatamente o que acontece. Não há sistema de controle, nem acompanhamento estatístico que possa informar o que irá acontecer. Mas esta é a base do atual sistema financeiro.
Cash - Entre estes mecanismos, que papel exerceu a “inovação financeira” nesta crise?
GD - O caráter insustentável da trajetória da economia dos Estados Unidos tinha que aparecer de certa maneira e isso aconteceu através de uma crise financeira, porque utilizaram o boom imobiliário para prolongar o crescimento econômico durante 4 ou 5 anos. A recessão de 2001 foi o ensaio geral da atual. Foi muito difícil para os norte-americanos sair dessa situação, que significou contração da atividade e crise das Bolsas.
Cash - E como conseguiram sair?
GD - Através da enorme queda da taxa de juro do Federal Reserve (FED) e da nova onda de investimentos na área de habitação através da titularização. Mas essa maneira de prolongar a sua trajetória positiva da economia também se tornou insustentável porque é impossível basear o crescimento de um país sobre o endividamento de casas que não podem pagar. Com uma particularidade: em 2006, mais da metade dos créditos “podres” foram vendidos ao resto do mundo. Alan Greenspan, quando era presidente do FED, dizia: “A titularização está muito bem porque dilui o risco. Os bancos não conservam os créditos podres, vendem-nos. Em particular exportam o risco ao Japão, à Europa”. Assim exportaram a sua crise.
Cash - O consumo das famílias é uma parte significativa dos ingressos dos Estados Unidos. Acredita que poderiam ter ensaiado políticas que apontariam este setor para sair desta crise?
GD - O problema não é de falta de demanda. Entre 2001 e 2007, o problema foi de excesso de demanda. No conjunto, os lares desse país gastam de forma desenfreada, ainda que seja um esquema heterogêneo, já que o poder de compra de 95% da população está estancado desde os anos 1970. Mas, considerando o conjunto das famílias, consomem mais do que ganham. Assim, a sua taxa de poupança é negativa.
Cash - Calcula-se que o custo da crise até outubro foi de aproximadamente 4,5 bilhões de dólares, contando Estados Unidos, Europa, Japão e Canadá. É possível estimar qual será o montante desta crise?
GD - É difícil de calcular. Quando falamos do “custo”, falamos de fatores heterogêneos: emprestar dinheiro não é a mesma coisa que comprar uma empresa que se nacionaliza ou comprar uma dívida podre. Nacionalizar significa que o Tesouro pode comprar as ações de um banco a um valor baixo. É difícil saber quanto custará a solvência do sistema porque com os créditos se pode comprar, mas também inclui a modalidade do Plano Paulson (secretário do Tesouro) que era comprar os “créditos podres” dos bancos.
Cash - Aproximadamente 10 milhões de famílias perderão suas casas. O que iria acontecer caso tomassem medidas de ajuda a essas pessoas em vez de salvar os bancos?
GD - Essa decisão deveria ter sido tomada mais cedo. Agora estamos numa situação de extrema urgência. Evitar uma crise como a do subprime era muito simples. Necessitava-se de uma decisão da Casa Branca, mas não o fez. Na França, o subprime não seria possível. Uma pessoa não pode pedir um crédito pelo qual tenha que pagar mais de 30% de seu ingresso mensal. Nos Estados Unidos, uma família paga até 80% de seu ingresso para reembolsar e pagar os juros.
Cash - Por que acredita que não se tomou essa decisão?
GD - Porque assim ganharam um dinheiro incrível entre 2001 e 2006. A taxa de lucros dos bancos nesse período disparou completamente. A outra razão é que necessitavam desse aumento dos créditos da habitação para sair da crise de 2001. Greenspan ficou muito preocupado ao ver o aumento da taxa de juro do FED, mas as taxas dos créditos hipotecários não subiram. Era a primeira vez que isto acontecia. A explicação de Greenspan foi: “Eu aumento o custo do crédito aos bancos e estes não o repassam”. Porque podem pedir dinheiro emprestado ao resto do mundo e o resto do mundo está disponível para emprestar com uma taxa de juro menos elevada. E Greenspan descobriu que não podia controlar a taxa de juro dos créditos hipotecários.
Cash - Há certa preocupação com a possibilidade de que esta crise derive em protecionismo comercial. Acredita que alguns países irão recorrer a políticas deste tipo?
GD - Depois desta crise, os Estados Unidos necessitam corrigir sua trajetória econômica. Isso significa sair de muitos aspectos do neoliberalismo. O protecionismo é uma questão, mas o problema é que o poder econômico norte-americano se baseia em suas empresas transacionais, que necessitam do livre comércio, da livre mobilidade do capital, ao passo que a trajetória da economia é incompatível com a livre mobilidade do capital.
Cash - E como resolvem essa incompatibilidade?
GD - Enganando. Por exemplo, o Exército norte-americano decide comprar aviões europeus, o governo diz que não. Ou se antes da crise a China queria comprar uma empresa de petróleo, o governo dizia: “Não. Segurança nacional”. Tudo isto antes da crise. Agora é diferente porque estão numa situação terrível e são mais flexíveis.
Cash - Fala-se da importante dívida externa dos Estados Unidos. No entanto, você disse que não se trata exatamente de uma dívida. Por quê?
GD - Não é uma dívida. A expressão correta é que o resto do mundo financia a economia norte-americana. Financiar significa ter ações, bônus do Tesouro. Esses títulos são uma dívida. Mas uma ação não é uma dívida. Mesmo que isto não muda o fato de que o resto do mundo tem um comportamento mais ou menos rentista.
Cash - Em que sentido?
GD - Por exemplo, um banco central como o da China comprava bônus do Tesouro a uma taxa de juro de 5% ao ano. Mas, quando os Estados Unidos fazem inversões diretas em outros países conseguem taxas de rendimento de 15% ou 20%. O resto do mundo financiava a economia norte-americana de forma bastante barata em termos comparativos. Mas agora estamos entrando numa nova fase porque o resto do mundo quer entrar no coração do animal e também se beneficiar de rendimentos elevados. A China, por exemplo, vai usar seus dólares para fazer inversões ativas, não rentistas, entrando nas grandes entidades norte-americanas e com o mesmo tipo de rendimento no mundo. Isso é uma situação nova.
Cash - Diz-se que a China financiará a crise de Wall Street pela quantidade de bônus do Tesouro que possui. Você acredita que a China pode desbancar os Estados Unidos de seu papel de maior potência mundial?
GD - Não estamos nessa situação, de forma alguma. A China desempenha um papel muito importante agora porque tem enormes reservas de divisas (dólares e euros) por seu superávit comercial, que não é outra coisa que o déficit comercial norte-americano.
Cash - O problema é que muitos países emergentes têm problemas de divisas. Quem poderia ajudá-los?
GD - O Fundo Monetário Internacional, mas seus recursos são muito limitados. Diz-se que a China deve emprestar dinheiro ao Fundo. A China responde: “Estamos de acordo, mas necessitamos de um novo sistema financeiro internacional”, no qual outras moedas, não apenas o dólar, exerçam um papel importante.
Cash - Antes desta crise você afirmou que a América Latina era a oportunidade para a mudança. Continua a pensar assim?
GD - Sim, porque provavelmente depois da crise tenhamos um processo de diferenciação em escala mundial. O mundo não é uniforme. Os Estados Unidos vão se recuperar de alguma maneira, a Europa talvez de outra e a China de maneira completamente diferente. A América Latina foi historicamente uma região de resistência e escolheu governos de esquerda. O problema é o que acontece com governos de esquerda. Por exemplo, o caso do Brasil.
Cash - Por que alude ao caso do Brasil?
GD - Porque a política do Brasil é 100% neoliberal. O caso da Argentina é particular porque, depois de uma década de loucura neoliberal, teve esta crise terrível de 2001 e saiu de forma bastante hábil. Na França, uma pessoa de esquerda bastante radical considera que os três países andinos - Venezuela, Equador e Bolívia - representam uma esperança, porque escolheram governos de esquerda que pensam na formação de um bloco. Provavelmente, o caso mais simples é o do Equador, porque é um governo muito sério com uma vontade nacional de recuperação dos recursos do país, de alcançar uma mudança social. E tem, de certa maneira, um grau de harmonia social.
Cash - E o caso da Bolívia?
GD - É muito difícil. Muita gente na França pensa que a Bolívia está construindo o socialismo. Há um governo comprometido com uma mudança social, em recuperar seus recursos, desenvolver o país, ainda que com uma alta tensão social. E na Venezuela, o povo basicamente apóia Chávez, mas também há uma burguesia com uma relação muito difícil com o governo.
Cash - Isso dificulta a mudança?
GD - É um país com uma burocracia muito grande. O próprio Chávez tem muitas dificuldades para controlar essa burocracia.
Cash - A situação na região hoje é mais complexa do que há dois anos?
GD - Exatamente. E a Argentina estava em situação de sair da crise e o fez de forma formidável. Não sair do neoliberalismo, mas acabar realmente com esta variedade louca do neoliberalismo. Para mim, a América Latina segue representando uma esperança. É um continente de tradição de luta.
(IHU On-Line)
Mercado real com ofertas de bons investimentos em desenvolvimento
Wolfgang Kerler, da IPS
Os empreendimentos da sociedade civil poderão encontrar potenciais investidores e compartilhar seus conhecimentos através da Bolsa de Valores de Desenvolvimento Humano Sul-Sul (SS-HDSX), que opera na Internet. Trata-se de um “mercado real que reúne ofertas de bons investimentos em desenvolvimento e gente que quer fazer investimentos sociais”, explicou à IPS Francisco Simplício, da Unidade Especial para a Cooperação Sul-Sul 9SU/SSC) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).
Comemorando o quinto Dia das Nações Unidas para a Cooperação Sul-Sul, nesta sexta-feira, o diretor da SU/SSC, Yiping Zhou, apresentou o projeto desta bolsa de valores esta semana na Organização das Nações Unidas. Até agora, constam de seu site (http://www.ss-hdsx.org) dois projetos de investimento. Com base em experiências da Índia, 50 mulheres do Sri Lanka serão capacitadas para fazer conservas de camarões e processamento de alimentos para permitir-lhes abrir pequenas empresas sustentáveis.
O outro projeto pretende treinar especialistas do Quênia no Brasil, para que possam ajudar pelo menos cem jovens e adultos quenianos no estabelecimento de pequenas empresas que produzam roubas e artesanatos, artigos de papelaria e enfeites. Um programa semelhante teve ótimos resultados no Brasil. Para proporcionarem os US$ 32 mil necessários para o primeiro projeto e os US$ 45 mil para o segundo, os investidores podem comprar ações a US$ 25 cada uma. O que distingue estes investimentos das doações tradicionais é que os acionistas receberão atualizações regulares sobre o modo como seu dinheiro está sendo gasto e sobre seu impacto. Isso incentiva a responsabilidade das organizações beneficiarias.
“Ao “dar o exemplo”, com disse Simplício, a SS-HDSX vence alguns obstáculos que costumam impedir uma cooperação mais profunda entre os países em desenvolvimento. Embora não escasseiem as redes que permitem identificar melhores práticas e inovações para o desenvolvimento, faltam mecanismos que facilitem a transferência real de conhecimento ou tecnologia de um país do Sul para outro. Portanto, os atores no setor observaram os instrumentos que a economia de mercado tinha para oferecer.
Com as bolsas de valores sociais “estamos recolhendo os melhores conceitos do sistema capitalista, com governabilidade e transparência, próprias de uma bolsa de valores”, disse Celso Grecco à IPS. Em 2003, Grecco criou no Brasil a primeira bolsa desse tipo no mundo. “Mas estamos nos livrando das piores partes do sistema: os que querem amassar muito dinheiro em pouco tempo”, acrescentou.
As experiências do Brasil, e também de outros mercados de investimentos sociais na África do Sul, Índia, China e Estados Unidos, mostraram que estas iniciativas tornam mais acessível o capital para as comunidades pobres do Sul. Os projetos de desenvolvimento humano ganham uma visibilidade maior e os custos das relações com os investidores são reduzidos. Com uma seleção competente e supervisão dos projetos apoiados, os investimentos em uma bolsa de valores sociais também são mais atraentes do que as doações tradicionais.
Os doadores menores e não tradicionais podem adquirir ações mais facilmente nos projetos de desenvolvimento “E seus investimentos realmente redundam em uma sociedade melhor”, disse Grecco. No Brasil, 81 dos 104 projetos de desenvolvimento listados foram plenamente financiados através da bolsa de valores sociais desde 2003, com financiamento total de US$ 7,5 milhões. A SS-0HDSX é a primeira tentativa de criar um mercado de valores sociais em nível planetário.
Yuvan A. Beejadhur, representante do Banco Mundial presente no lançamento da SS-HDSX, também enfatizou a importância da cooperação Sul-Sul e do compromisso do Banco em promovê-la ainda mais. Mas, não confirmou que a instituição irá se associar com o Pnud na SS-HDS. “A questão-chave que falta ver é quais implicações terão essas iniciativas para as operações de nosso banco”, disse Beejadhur à IPS.
Simplício afirmou à IPS que vê o “trabalho verticalista” do Banco Mundial como um complemento necessário para o novo enfoque “que promove o desenvolvimento de baixo para cima”. Por sua vez, Zhou, do Pnud, concluiu dizendo que a SS-HDSX “poderá ser um motivo para esperar uma nova plataforma de desenvolvimento iunclusivo para o Sul global. Mas, deve comprometer a participação ativa do setor público, privado e não-governamental”.
(Envolverde/IPS)
Os empreendimentos da sociedade civil poderão encontrar potenciais investidores e compartilhar seus conhecimentos através da Bolsa de Valores de Desenvolvimento Humano Sul-Sul (SS-HDSX), que opera na Internet. Trata-se de um “mercado real que reúne ofertas de bons investimentos em desenvolvimento e gente que quer fazer investimentos sociais”, explicou à IPS Francisco Simplício, da Unidade Especial para a Cooperação Sul-Sul 9SU/SSC) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).
Comemorando o quinto Dia das Nações Unidas para a Cooperação Sul-Sul, nesta sexta-feira, o diretor da SU/SSC, Yiping Zhou, apresentou o projeto desta bolsa de valores esta semana na Organização das Nações Unidas. Até agora, constam de seu site (http://www.ss-hdsx.org) dois projetos de investimento. Com base em experiências da Índia, 50 mulheres do Sri Lanka serão capacitadas para fazer conservas de camarões e processamento de alimentos para permitir-lhes abrir pequenas empresas sustentáveis.
O outro projeto pretende treinar especialistas do Quênia no Brasil, para que possam ajudar pelo menos cem jovens e adultos quenianos no estabelecimento de pequenas empresas que produzam roubas e artesanatos, artigos de papelaria e enfeites. Um programa semelhante teve ótimos resultados no Brasil. Para proporcionarem os US$ 32 mil necessários para o primeiro projeto e os US$ 45 mil para o segundo, os investidores podem comprar ações a US$ 25 cada uma. O que distingue estes investimentos das doações tradicionais é que os acionistas receberão atualizações regulares sobre o modo como seu dinheiro está sendo gasto e sobre seu impacto. Isso incentiva a responsabilidade das organizações beneficiarias.
“Ao “dar o exemplo”, com disse Simplício, a SS-HDSX vence alguns obstáculos que costumam impedir uma cooperação mais profunda entre os países em desenvolvimento. Embora não escasseiem as redes que permitem identificar melhores práticas e inovações para o desenvolvimento, faltam mecanismos que facilitem a transferência real de conhecimento ou tecnologia de um país do Sul para outro. Portanto, os atores no setor observaram os instrumentos que a economia de mercado tinha para oferecer.
Com as bolsas de valores sociais “estamos recolhendo os melhores conceitos do sistema capitalista, com governabilidade e transparência, próprias de uma bolsa de valores”, disse Celso Grecco à IPS. Em 2003, Grecco criou no Brasil a primeira bolsa desse tipo no mundo. “Mas estamos nos livrando das piores partes do sistema: os que querem amassar muito dinheiro em pouco tempo”, acrescentou.
As experiências do Brasil, e também de outros mercados de investimentos sociais na África do Sul, Índia, China e Estados Unidos, mostraram que estas iniciativas tornam mais acessível o capital para as comunidades pobres do Sul. Os projetos de desenvolvimento humano ganham uma visibilidade maior e os custos das relações com os investidores são reduzidos. Com uma seleção competente e supervisão dos projetos apoiados, os investimentos em uma bolsa de valores sociais também são mais atraentes do que as doações tradicionais.
Os doadores menores e não tradicionais podem adquirir ações mais facilmente nos projetos de desenvolvimento “E seus investimentos realmente redundam em uma sociedade melhor”, disse Grecco. No Brasil, 81 dos 104 projetos de desenvolvimento listados foram plenamente financiados através da bolsa de valores sociais desde 2003, com financiamento total de US$ 7,5 milhões. A SS-0HDSX é a primeira tentativa de criar um mercado de valores sociais em nível planetário.
Yuvan A. Beejadhur, representante do Banco Mundial presente no lançamento da SS-HDSX, também enfatizou a importância da cooperação Sul-Sul e do compromisso do Banco em promovê-la ainda mais. Mas, não confirmou que a instituição irá se associar com o Pnud na SS-HDS. “A questão-chave que falta ver é quais implicações terão essas iniciativas para as operações de nosso banco”, disse Beejadhur à IPS.
Simplício afirmou à IPS que vê o “trabalho verticalista” do Banco Mundial como um complemento necessário para o novo enfoque “que promove o desenvolvimento de baixo para cima”. Por sua vez, Zhou, do Pnud, concluiu dizendo que a SS-HDSX “poderá ser um motivo para esperar uma nova plataforma de desenvolvimento iunclusivo para o Sul global. Mas, deve comprometer a participação ativa do setor público, privado e não-governamental”.
(Envolverde/IPS)
O fracasso da última tentativa para combater paraísos fiscais
Julio Godoy, da IPS
A última tentativa internacional para combater os paraísos fiscais foi um fracasso. Cerca de 200 especialistas em finanças internacionais se reuniram no mês passado em Montecarlo para estudar regras mais duras contra a evasão fiscal. Esta cidade fica no principado de Mônaco, sul da França, um dos mais famosos paraísos fiscais da Europa. “Discutimos a evasão no coração geográfico do problema”, disse à IPS um dos especialistas franceses que participou da conferência. “Mônaco tem uma imagem muito ruim, inclusive na comunidade financeira internacional”, acrescentou.
Mônaco, Andorra e Liechtenstein são os últimos paraísos fiscais europeus acusados de não aplicar as normas voluntárias de transparência financeira e intercâmbio de informação da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE), que tem entre seus 30 membros todas as economias do Norte rico. Mas, a reunião em Montecarlo, organizada pelo Grupo de Ação Financeira da OCDE, pelo menos demonstrou que a luta contra a evasão fiscal voltou a constar da agenda internacional. A OCDE e seu Grupo de Ação Financeira travam desde o começo da década de 90 uma batalha contra os paraísos fiscais, refúgio de fundos especulativos e procedentes de atividades criminosas.
Um paraíso fiscal é um território - Estado ou jurisdição dentro de um Estado - onde os impostos são baixos ou não existem. Isso é um convite para pessoas endinheiradas ou empresas depositarem ali seus haveres, com a finalidade de escapar dos impostos em seus países. Sempre são centros de lavagem de dinheiro, porque são feitas poucas perguntas aos depositantes sobre a origem ou o destino do dinheiro. Os esforços da OCDE e do Grupo de ação Financeira foram infrutíferos. Estes são “os tempos econômicos mais difíceis que enfrentamos em muitas décadas”, disse em outubro, em uma conferência na sede da OCDE em Paris, o diretor-geral da organização, Angel Gurría.
Essa reunião, proposta por Alemanha e França, países que com mais afinco promovem o controle ou fechamento dos paraísos fiscais, aconteceu para analisar o regate de instituições financeiras afetadas pela crise, muitas delas por causa de suas atividades especulativas. “Acordamos emprestar dinheiro aos bancos para resgatá-los da quebra, mas ao mesmo tempo eles não poderão continuar trabalhando com paraísos fiscais”, os quais deveriam ser fechados, disse o presidente francês, Nicolas Sarkozy. Gurría calculou que os paraísos fiscais em todo o mundo têm em seus cofres US$ 7 trilhões. “Muitas nações nos últimos três anos reforçaram suas leis contra a evasão”, acrescentou.
Mas alguns números sugerem o contrário. A rede Tax Justice Network, com sede em Londres, estimou que são US$11 trilhões que, para não pagar impostos em seu lugar de origem, estão escondidos em países europeus como Liechtenstein, Mônaco e Suíça e outros paraísos fiscais de todo o mundo. Há oito anos, o Fundo Monetário Internacional calculou que havia em depósitos nos paraísos fiscais um trilhão de dólares. Portanto, o fluxo para suas instituições aumentou significativamente. Mas a última edição da “lista negra” de paraísos fiscais “que não colaboram”, elaborada pelo Grupo de Ação Financeira da OCDE e que data de 2006, está em branco. Porém, em 2005 incluía 15 países, jurisdições e territórios.
Gurría informou que neste ano a lista contará com três países: Andorra, Liechtenstein e Mônaco. Muitos especialistas acreditam que este tipo de listagem não tem nenhum sentido, pois há milhares de contas bancárias secretas operadas através de paraísos fiscais e os esforços renovados de regulamentação parecem destinados ao fracasso. “Naturalmente, aplaudo o regresso da lista, mas, ainda sou pessimista”, disse à IPS o especialista francês em paraísos fiscais Jean Merckaert. A luta tem um atraso de 15 anos, pelo menos, assegurou. “Após mais de 10 anos durante os quais houve muito debate sobre luta contra a evasão, devemos admitir que nada mudou”, ressaltou Merckaert.
A suposta cooperação financeira internacional na matéria é meramente retórica, prosseguiu o especialista francês, afirmando que “para um paraíso fiscal deixar de constar da lista do Grupo de Ação Financeira é suficiente assinar um acordo de cooperação”. Países da União Européia, como a Alemanha, lançaram campanhas contra os cidadãos que cometem evasão fiscal através de contas secretas em outros países do bloco. Na reunião do Grupo de Ação Financeira o príncipe Albert, de Mônaco, negou que seu país seja um paraíso fiscal. “Sei que Mônaco deve ter uma conduta irreprovável em suas atividades financeiras”, assegurou, mas, atrair credibilidade.
“Mônaco continua sendo um buraco negro da globalização financeira”, disse o juiz francês Renaud Van Ruymbeke, que fez numerosas investigações sobre crimes do colarinho branco, entrevistado pelo jornal Le Monde, de Paris. “Me surpreende que nossos líderes políticos acabem de descobrir agora os centros financeiros off-shore”, ironizou o magistrado. “Com muitos colegas, os denunciamos em 1996 ao lançar o Chamado de Genebra, no qual alertávamos que os paraísos fiscais também são paraísos para os criminosos”, explicou.
(Envolverde/IPS)
A última tentativa internacional para combater os paraísos fiscais foi um fracasso. Cerca de 200 especialistas em finanças internacionais se reuniram no mês passado em Montecarlo para estudar regras mais duras contra a evasão fiscal. Esta cidade fica no principado de Mônaco, sul da França, um dos mais famosos paraísos fiscais da Europa. “Discutimos a evasão no coração geográfico do problema”, disse à IPS um dos especialistas franceses que participou da conferência. “Mônaco tem uma imagem muito ruim, inclusive na comunidade financeira internacional”, acrescentou.
Mônaco, Andorra e Liechtenstein são os últimos paraísos fiscais europeus acusados de não aplicar as normas voluntárias de transparência financeira e intercâmbio de informação da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE), que tem entre seus 30 membros todas as economias do Norte rico. Mas, a reunião em Montecarlo, organizada pelo Grupo de Ação Financeira da OCDE, pelo menos demonstrou que a luta contra a evasão fiscal voltou a constar da agenda internacional. A OCDE e seu Grupo de Ação Financeira travam desde o começo da década de 90 uma batalha contra os paraísos fiscais, refúgio de fundos especulativos e procedentes de atividades criminosas.
Um paraíso fiscal é um território - Estado ou jurisdição dentro de um Estado - onde os impostos são baixos ou não existem. Isso é um convite para pessoas endinheiradas ou empresas depositarem ali seus haveres, com a finalidade de escapar dos impostos em seus países. Sempre são centros de lavagem de dinheiro, porque são feitas poucas perguntas aos depositantes sobre a origem ou o destino do dinheiro. Os esforços da OCDE e do Grupo de ação Financeira foram infrutíferos. Estes são “os tempos econômicos mais difíceis que enfrentamos em muitas décadas”, disse em outubro, em uma conferência na sede da OCDE em Paris, o diretor-geral da organização, Angel Gurría.
Essa reunião, proposta por Alemanha e França, países que com mais afinco promovem o controle ou fechamento dos paraísos fiscais, aconteceu para analisar o regate de instituições financeiras afetadas pela crise, muitas delas por causa de suas atividades especulativas. “Acordamos emprestar dinheiro aos bancos para resgatá-los da quebra, mas ao mesmo tempo eles não poderão continuar trabalhando com paraísos fiscais”, os quais deveriam ser fechados, disse o presidente francês, Nicolas Sarkozy. Gurría calculou que os paraísos fiscais em todo o mundo têm em seus cofres US$ 7 trilhões. “Muitas nações nos últimos três anos reforçaram suas leis contra a evasão”, acrescentou.
Mas alguns números sugerem o contrário. A rede Tax Justice Network, com sede em Londres, estimou que são US$11 trilhões que, para não pagar impostos em seu lugar de origem, estão escondidos em países europeus como Liechtenstein, Mônaco e Suíça e outros paraísos fiscais de todo o mundo. Há oito anos, o Fundo Monetário Internacional calculou que havia em depósitos nos paraísos fiscais um trilhão de dólares. Portanto, o fluxo para suas instituições aumentou significativamente. Mas a última edição da “lista negra” de paraísos fiscais “que não colaboram”, elaborada pelo Grupo de Ação Financeira da OCDE e que data de 2006, está em branco. Porém, em 2005 incluía 15 países, jurisdições e territórios.
Gurría informou que neste ano a lista contará com três países: Andorra, Liechtenstein e Mônaco. Muitos especialistas acreditam que este tipo de listagem não tem nenhum sentido, pois há milhares de contas bancárias secretas operadas através de paraísos fiscais e os esforços renovados de regulamentação parecem destinados ao fracasso. “Naturalmente, aplaudo o regresso da lista, mas, ainda sou pessimista”, disse à IPS o especialista francês em paraísos fiscais Jean Merckaert. A luta tem um atraso de 15 anos, pelo menos, assegurou. “Após mais de 10 anos durante os quais houve muito debate sobre luta contra a evasão, devemos admitir que nada mudou”, ressaltou Merckaert.
A suposta cooperação financeira internacional na matéria é meramente retórica, prosseguiu o especialista francês, afirmando que “para um paraíso fiscal deixar de constar da lista do Grupo de Ação Financeira é suficiente assinar um acordo de cooperação”. Países da União Européia, como a Alemanha, lançaram campanhas contra os cidadãos que cometem evasão fiscal através de contas secretas em outros países do bloco. Na reunião do Grupo de Ação Financeira o príncipe Albert, de Mônaco, negou que seu país seja um paraíso fiscal. “Sei que Mônaco deve ter uma conduta irreprovável em suas atividades financeiras”, assegurou, mas, atrair credibilidade.
“Mônaco continua sendo um buraco negro da globalização financeira”, disse o juiz francês Renaud Van Ruymbeke, que fez numerosas investigações sobre crimes do colarinho branco, entrevistado pelo jornal Le Monde, de Paris. “Me surpreende que nossos líderes políticos acabem de descobrir agora os centros financeiros off-shore”, ironizou o magistrado. “Com muitos colegas, os denunciamos em 1996 ao lançar o Chamado de Genebra, no qual alertávamos que os paraísos fiscais também são paraísos para os criminosos”, explicou.
(Envolverde/IPS)
Comunicação e governança do risco fazem parte de um debate necessário
Gabriela Marques Di Giulio, Bernardino Ribeiro de Figueiredo e Lúcia da Costa Ferreira*, para a revista Com Ciência
A complexidade dos problemas e riscos enfrentados pela sociedade, geralmente caracterizados por fatos incertos, controvérsias, decisões urgentes e apostas elevadas, e as incertezas científicas inerentes ao conhecimento científico, às substâncias químicas e às questões ambientais têm levado pesquisadores, governantes e representantes de órgãos governamentais a refletirem sobre a necessidade de colocar em prática uma nova abordagem no enfrentamento dos riscos.
Essa nova abordagem deve levar em conta que o risco vai além de uma situação ou evento onde algo de valor humano (inclusive a vida humana) está em jogo e onde o resultado é incerto. Como é observado e mensurado dentro de um contexto, o risco e as respostas a uma situação de risco devem ser entendidos como construções sociais, já que interagem com processos psicológicos, sociais, institucionais e culturais. Os riscos são parte da experiência cotidiana e, por isso mesmo, todos os atores envolvidos podem reivindicar legitimamente a sua autoridade na definição e solução dos problemas identificados. É preciso, assim, prever a necessidade do diálogo com aquelas pessoas que vivenciam de fato os riscos que favoreça a sua participação e influência na definição dos assuntos a serem discutidos e nas decisões a serem tomadas.
Esse diálogo tem de ser permeado pela premissa de que o conhecimento leigo não é irracional e que julgamentos de valor e influências subjetivas estão presentes em todas as fases do processo de gestão de riscos, dividindo também os peritos. É preciso lembrar que para problemas complexos - como aqueles que caracterizam as situações de risco - há mais de uma solução técnica e que a opção entre elas, longe de ser exclusivamente técnica, é também política, social, cultural ou econômica.
O desafio lançado, como propõe a socióloga Júlia Guivant, está diretamente relacionado com a percepção de que as controvérsias sociotécnicas, comuns em situações de risco, devem ser vistas como oportunidades para explorar alternativas possíveis e que o interesse coletivo é produto de negociações, conflitos sociais e alianças. Está relacionado também com a prática de uma comunicação de risco que não se limite ao modelo do déficit de conhecimento, no qual os peritos comunicam os conhecimentos e suas “verdades científicas” para os leigos para evitar que estes permaneçam na ignorância e irracionalidade. Ao contrário, o enfrentamento dos riscos exige um exercício de comunicação que envolva orientações e ferramentas estratégicas para que cientistas, governantes, técnicos e comunicadores saibam como construir uma atmosfera de confiança com todos os atores sociais envolvidos.
O interesse pela comunicação de risco vem crescendo nos últimos anos e é resultado do debate que tem ocorrido nas sociedades sobre abertura do processo decisório, justiça, confiança, participação pública e democracia; temas que têm tido papel central no desenvolvimento das agendas de pesquisa e política. É resultado também da consciência de que é possível lidar de forma mais eficaz com as respostas públicas dadas ao risco se, às pessoas afetadas pelas decisões sobre riscos, é dada a oportunidade de participarem efetivamente do processo decisório, ensejando assim um processo analítico e deliberativo, no qual os efeitos da amplificação do risco são incluídos como um elemento importante nas decisões que são discutidas e tomadas. Entende-se por amplificação social do risco o fenômeno pelo qual os processos de informação, as estruturas institucionais, o comportamento do grupo social e as respostas individuais dão forma à experiência social do risco, contribuindo para suas conseqüências.
A comunicação de risco ganhou força e passou a ser considerada como algo importante na avaliação e gerenciamento do risco com o acidente de Chernobyl, ocorrido em 1986 na Ucrânia. O acidente evidenciou o despreparo das autoridades e organizações responsáveis pela segurança no enfrentamento de situações de risco e a dificuldade que os pesquisadores, sobretudo, têm em comunicar informação técnica sobre riscos ou sobre falhas nas estimativas de riscos e de abrir um diálogo com o chamado público leigo.
Entre os principais objetivos da comunicação de risco é possível destacar a promoção de um diálogo sensível às necessidades da comunidade que vivencia situações de riscos, o estabelecimento de uma relação de confiança entre comunidade, pesquisadores e autoridades e a integração do público no processo de gerenciamento do risco (promovendo, assim, a chamada governança do risco).
Apesar do avanço no debate e do reconhecimento da importância desse processo comunicativo, o tema ainda é pouco abordado em estudos científicos. Na prática, o enfrentamento dos riscos ambientais, tecnológicos e de saúde mostra que as autoridades responsáveis enfrentam dificuldades no que concerne à comunicação, haja vista as situações de catástrofes naturais recentes, como o tsunami registrado no continente asiático em 2005; os impactos advindos com as mudanças climáticas, retratados no último relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado no primeiro semestre de 2007; e os casos de doenças infecciosas, como a recente gripe aviária, que tem demandado maior atenção dos órgãos responsáveis pela vigilância sanitária. São situações que evidenciam a falta de estratégias para lidar com os riscos que se apresentam, a ausência de um planejamento sobre como comunicar as informações para a comunidade local e para a mídia e o uso de uma abordagem de gerenciamento de risco ainda muito técnica, desconsiderando a necessidade de obtenção de input do público antes que sejam tomadas decisões.
Mesmo em situações nas quais a comunicação de risco tem sido considerada como parte integrante do processo de avaliação e gestão do risco, os esforços não têm obtido grande sucesso porque falham em considerar e relacionar os diversos fatores psicológicos, sociais e políticos que estão envolvidos nas percepções e atitudes das pessoas. Esses fatores - familiaridade, controle, potencial catastrófico, equidade, nível de conhecimento, cultura, crenças, justiça, moral, participação dos interessados, legitimidade das instituições - são determinantes na superestimação ou subestimação de determinados riscos, assim como a forma como os meios de comunicação divulgam determinados riscos.
Considerar, assim, a dimensão social e a questão da subjetividade no gerenciamento do risco é fundamental para a abertura do diálogo e para a conquista da participação pública no processo decisório. O paradigma clássico da avaliação e gestão do risco ambiental - que inclui estimativas numéricas que relacionam a intensidade da poluição a potenciais riscos e medidas para reduzir as ameaças de risco à vida, à propriedade e ao ambiente - apresenta diversas deficiências. A principal delas é não levar em conta como as populações percebem e convivem com tais riscos.
Governança de risco
A discussão sobre comunicação de risco enseja a abordagem de um outro tema - governança do risco. Entende-se por governança um novo arranjo institucional no qual o processo decisório é coletivo, envolvendo atores governamentais e não governamentais. Na governança do risco, a forma como as informações são coletadas, analisadas e comunicadas estão no centro da atenção, assim como a idéia de que o conhecimento leigo não é irracional e de que os julgamentos de valor estão presentes em todas as fases do processo de avaliação e gestão de risco, por parte dos especialistas e do público.
Apesar das críticas quanto ao emprego da palavra governança (com diferentes significados e usada para diferentes situações), o termo governança do risco é adotado com base na idéia de um processo decisório democrático e participativo relacionado ao gerenciamento do risco, entendendo participação como o compartilhamento do poder decisório do Estado em relação às questões de interesse público e como condição necessária para assegurar que as instituições governamentais atuem de forma responsável perante seus cidadãos, criando possibilidades para que indivíduos e grupos influenciem as decisões que os afetam (promovendo assim competência e capacidade para isso) e contribuindo para a estabilidade do sistema democrático.
Em situações de risco, a prática de um processo decisório mais aberto e participativo, que inclua de fato as percepções, necessidades e interesses das comunidades afetadas, tem-se mostrado cada vez mais relevante. As justificativas estão embasadas na premissa de que, quanto mais envolvida estiver uma comunidade no processo decisório, maior será a possibilidade de preservação do ambiente local, maior é a possibilidade de induzir o público geral a agir individualmente ou coletivamente para reduzir o risco e maiores serão as chances de evitar que uma determinada comunidade ou local sejam estigmatizados em decorrência dos riscos que enfrenta. Os pesquisadores James Flynn e Paul Paul, autores do artigo “Avaliações dos peritos e do público acerca dos riscos tecnológicos” (referência abaixo), reconhecem que, no nível prático, o envolvimento do público pode melhorar a relevância e a qualidade das análises técnicas e, sobretudo, pode aumentar a legitimidade e a aceitação pública das decisões finais.
A participação de uma comunidade na discussão dos seus problemas e na elaboração de possíveis ações também tem implicação direta no desenvolvimento de potenciais democráticos. Mesmo que os desejos e aspirações dessa comunidade não sejam plenamente alcançados no enfrentamento do risco, o fato de algumas pessoas se envolverem, participarem do debate e se unirem em modelos associativos a partir de um projeto político em comum, por si só, já é um ganho. Representa a chance de desenvolver, naquela comunidade, capacidades pessoais de análise e argumentação, o exercício de deliberação, a tolerância e a solidariedade.
Essa participação pode acontecer através de exercícios de consulta aos cidadãos (consulta pública, debate público e uso de grupos focais para definição de políticas públicas), avaliação participativa de tecnologias (com as conferências de consenso ou de cidadãos, fóruns de discussão e júri de cidadãos), desenvolvimento participativo de tecnologias, investigação participativa, entre outros. Essas formas de participação, como observa o pesquisador português Boaventura de Souza Santos, da Universidade de Coimbra, podem aparecer em versões que reforcem os modos hegemônicos de conhecimento e de exercício do poder político, organizadas de “cima para baixo”. Mas podem surgir também sob formas contra-hegemônicas, organizadas de “baixo para cima” com critérios mais amplos de inclusão. De todo modo, para que o enfrentamento do risco seja participativo e democrático é importante que os grupos cujos interesses são afetados e estão em pauta estejam bem representados nos processos decisórios.
No enfrentamento dos riscos, a participação dos cidadãos mais do que um direito é uma necessidade. Como são agentes conhecedores (porque convivem com os riscos e enfrentam as diversas conseqüências advindas deles), esses indivíduos são capazes de discutir os problemas e de lutar para que o poder de pensamento e ação para definir o que será feito para resolver ou mitigar os problemas que vivenciam não fique apenas nas mãos dos stakeholders da ciência, da política e da economia. Para isso, a prática de uma comunicação de risco que, de fato, considere os elementos sociais, culturais e econômicos envolvidos, parta do pressuposto de que aquelas pessoas afetadas pelas decisões devem estar envolvidas no processo de sugestões e escolhas de alternativas e instaure uma estratégia aberta e coletiva de produção de conhecimento é fundamental. É preciso, como lembra o pesquisador Boaventura de Souza Santos, construir uma rede de intervenção, na qual todas as formas de conhecimento - técnico, leigo, tradicional, local - possam construtivamente participar em função da sua relevância para a situação em causa.
Breve comentário sobre a experiência internacional no tema
Nos Estados Unidos, em situações de risco relacionadas à contaminação ambiental e exposição humana a substâncias perigosas, a prática da comunicação de risco é motivada e, geralmente, ocorre como resultado das leis e regulamentações existentes. Exemplo disso é a lei federal conhecida como Cercla (abreviatura em inglês de Comprehensive Environmental Response, Compensation and Liability Act), que criou a taxa do Superfund para ser usada para investigar e limpar sítios com resíduos perigosos abandonados ou sem controle. A lei requer, dentro dos procedimentos de avaliação de risco, que as relações com a comunidade sejam levadas em conta. Na prática, há a necessidade de haver um plano de relações com a comunidade que incorpore a obtenção de informação sobre o lugar, os interesses dos moradores em relação às ações de remediação, suas crenças e preocupações sobre o local onde vivem e métodos de comunicação que serão usados para envolver o público no processo de recuperação da área.
Na Europa, embora os países respondam de maneira particular aos diversos aspectos e gestão de áreas contaminadas, há uma concordância em alguns princípios fundamentais, como o princípio do poluidor pagador, e há também um direcionamento para a promoção de um debate mais aberto que, de fato, dê maior atenção aos conhecimentos tidos como tradicionais e às experiências locais. Países como o Reino Unido e a França já contam com legislação que estabelece como necessária a obtenção de input do público antes que sejam tomadas decisões em áreas de incertezas.
O Brasil, entretanto, apesar de possuir uma ampla legislação em aspectos ambientais, esta, muita vezes, não é levada a termo. Sobre áreas contaminadas especificamente, o país não tem desenvolvido uma legislação específica, recorrendo a normas legais que indiretamente estão regulando a gestão de sítios contaminados por resíduos perigosos. No caso de resíduos perigosos à saúde humana, o Ministério da Saúde aplica, desde 2002, a metodologia de avaliação de risco da Agência de Registro de Substâncias Tóxicas e Controle de Doenças (ATSDR, na sigla em inglês).
A metodologia da ATSDR inclui avaliação da informação do local, respostas às preocupações da comunidade, seleção dos contaminantes de interesse, identificação e avaliação das rotas de exposição, caracterização das implicações para a saúde e conclusões e recomendações. Segundo documento do Ministério da Saúde, ao término do estudo de avaliação de risco a equipe de investigadores, seguindo a metodologia, deve fazer uma reunião com a população, com o objetivo de transmitir todo o conteúdo dos estudos.
No caso da avaliação de risco de contaminantes ambientais, a referência no Brasil são os procedimentos adotados e divulgados pela Companhia de Tecnologia e Saneamento Ambiental (Cetesb) do estado de São Paulo. A Cetesb foi o primeiro órgão ambiental a introduzir o tema da avaliação de riscos em nível nacional e o primeiro a criar uma unidade específica para tratar do assunto. O interesse pela avaliação de risco foi motivado pelo acidente em Cubatão, em 1984. A partir daí, a Cetesb passou a incorporar estudos de análise de riscos no processo de licenciamento ambiental, visando a prevenção de grandes acidentes e, em 1990, editou o Manual de Orientação para Elaboração de Estudos de Análise de Riscos, que passou por duas revisões, em 1994 e em 2000. Apesar da relevância das orientações da Cetesb quanto à prática da avaliação e gerenciamento de risco, observa-se que no Brasil a discussão sobre comunicação de risco e sobre a necessidade de envolver a comunidade, em situações de risco ambiental, ainda é escassa.
Gabriela Marques Di Giulio é jornalista e mestre em política científica e tecnológica e é doutoranda em ambiente e sociedade, ambos pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Bernardino Ribeiro Figueiredo é geólogo e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp.
Lúcia da Costa Ferreira é ecóloga, doutora em ciências sociais e pesquisadora do Nepam.
Para saber mais:
-Brasil. 2006. Diretrizes para elaboração de estudo de avaliação de risco à saúde humana por exposição a contaminantes químicos. http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/diretrizes_%20avaliacao_%20de_%20risco.pdf
- Flynn, J. & Slovic, P. 2000. “Avaliações dos peritos e do público acerca dos riscos tecnológicos”. In: Gonçalves, M.E. (org). Cultura científica e participação pública. Celta Editora, Oeiras, p. 109-128.
- Guivant, J.S. 2004. A governança dos riscos e os desafios para a redefinição da arena pública do Brasil. In: Ciência, tecnologia + sociedade. Novos modelos de governança. Brasília, 06 a 11 de dezembro. http://www.nisra.ufsc.br/pdf/A%20governa%5B1%5D…pdf
- Kasperson, R. et al. 2005. “The social amplification of risk: a conceptual framework”. In: Kasperson, J. & Kasperson, R.. The social contours of risk: publics, risk communication and the social amplification of risk. London: Earthscan. p. 99-114.
- Santos, B.S.(org). 2005. Semear outras soluções - os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
(Publicado originalmente pela revista Com Ciência)
A complexidade dos problemas e riscos enfrentados pela sociedade, geralmente caracterizados por fatos incertos, controvérsias, decisões urgentes e apostas elevadas, e as incertezas científicas inerentes ao conhecimento científico, às substâncias químicas e às questões ambientais têm levado pesquisadores, governantes e representantes de órgãos governamentais a refletirem sobre a necessidade de colocar em prática uma nova abordagem no enfrentamento dos riscos.
Essa nova abordagem deve levar em conta que o risco vai além de uma situação ou evento onde algo de valor humano (inclusive a vida humana) está em jogo e onde o resultado é incerto. Como é observado e mensurado dentro de um contexto, o risco e as respostas a uma situação de risco devem ser entendidos como construções sociais, já que interagem com processos psicológicos, sociais, institucionais e culturais. Os riscos são parte da experiência cotidiana e, por isso mesmo, todos os atores envolvidos podem reivindicar legitimamente a sua autoridade na definição e solução dos problemas identificados. É preciso, assim, prever a necessidade do diálogo com aquelas pessoas que vivenciam de fato os riscos que favoreça a sua participação e influência na definição dos assuntos a serem discutidos e nas decisões a serem tomadas.
Esse diálogo tem de ser permeado pela premissa de que o conhecimento leigo não é irracional e que julgamentos de valor e influências subjetivas estão presentes em todas as fases do processo de gestão de riscos, dividindo também os peritos. É preciso lembrar que para problemas complexos - como aqueles que caracterizam as situações de risco - há mais de uma solução técnica e que a opção entre elas, longe de ser exclusivamente técnica, é também política, social, cultural ou econômica.
O desafio lançado, como propõe a socióloga Júlia Guivant, está diretamente relacionado com a percepção de que as controvérsias sociotécnicas, comuns em situações de risco, devem ser vistas como oportunidades para explorar alternativas possíveis e que o interesse coletivo é produto de negociações, conflitos sociais e alianças. Está relacionado também com a prática de uma comunicação de risco que não se limite ao modelo do déficit de conhecimento, no qual os peritos comunicam os conhecimentos e suas “verdades científicas” para os leigos para evitar que estes permaneçam na ignorância e irracionalidade. Ao contrário, o enfrentamento dos riscos exige um exercício de comunicação que envolva orientações e ferramentas estratégicas para que cientistas, governantes, técnicos e comunicadores saibam como construir uma atmosfera de confiança com todos os atores sociais envolvidos.
O interesse pela comunicação de risco vem crescendo nos últimos anos e é resultado do debate que tem ocorrido nas sociedades sobre abertura do processo decisório, justiça, confiança, participação pública e democracia; temas que têm tido papel central no desenvolvimento das agendas de pesquisa e política. É resultado também da consciência de que é possível lidar de forma mais eficaz com as respostas públicas dadas ao risco se, às pessoas afetadas pelas decisões sobre riscos, é dada a oportunidade de participarem efetivamente do processo decisório, ensejando assim um processo analítico e deliberativo, no qual os efeitos da amplificação do risco são incluídos como um elemento importante nas decisões que são discutidas e tomadas. Entende-se por amplificação social do risco o fenômeno pelo qual os processos de informação, as estruturas institucionais, o comportamento do grupo social e as respostas individuais dão forma à experiência social do risco, contribuindo para suas conseqüências.
A comunicação de risco ganhou força e passou a ser considerada como algo importante na avaliação e gerenciamento do risco com o acidente de Chernobyl, ocorrido em 1986 na Ucrânia. O acidente evidenciou o despreparo das autoridades e organizações responsáveis pela segurança no enfrentamento de situações de risco e a dificuldade que os pesquisadores, sobretudo, têm em comunicar informação técnica sobre riscos ou sobre falhas nas estimativas de riscos e de abrir um diálogo com o chamado público leigo.
Entre os principais objetivos da comunicação de risco é possível destacar a promoção de um diálogo sensível às necessidades da comunidade que vivencia situações de riscos, o estabelecimento de uma relação de confiança entre comunidade, pesquisadores e autoridades e a integração do público no processo de gerenciamento do risco (promovendo, assim, a chamada governança do risco).
Apesar do avanço no debate e do reconhecimento da importância desse processo comunicativo, o tema ainda é pouco abordado em estudos científicos. Na prática, o enfrentamento dos riscos ambientais, tecnológicos e de saúde mostra que as autoridades responsáveis enfrentam dificuldades no que concerne à comunicação, haja vista as situações de catástrofes naturais recentes, como o tsunami registrado no continente asiático em 2005; os impactos advindos com as mudanças climáticas, retratados no último relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado no primeiro semestre de 2007; e os casos de doenças infecciosas, como a recente gripe aviária, que tem demandado maior atenção dos órgãos responsáveis pela vigilância sanitária. São situações que evidenciam a falta de estratégias para lidar com os riscos que se apresentam, a ausência de um planejamento sobre como comunicar as informações para a comunidade local e para a mídia e o uso de uma abordagem de gerenciamento de risco ainda muito técnica, desconsiderando a necessidade de obtenção de input do público antes que sejam tomadas decisões.
Mesmo em situações nas quais a comunicação de risco tem sido considerada como parte integrante do processo de avaliação e gestão do risco, os esforços não têm obtido grande sucesso porque falham em considerar e relacionar os diversos fatores psicológicos, sociais e políticos que estão envolvidos nas percepções e atitudes das pessoas. Esses fatores - familiaridade, controle, potencial catastrófico, equidade, nível de conhecimento, cultura, crenças, justiça, moral, participação dos interessados, legitimidade das instituições - são determinantes na superestimação ou subestimação de determinados riscos, assim como a forma como os meios de comunicação divulgam determinados riscos.
Considerar, assim, a dimensão social e a questão da subjetividade no gerenciamento do risco é fundamental para a abertura do diálogo e para a conquista da participação pública no processo decisório. O paradigma clássico da avaliação e gestão do risco ambiental - que inclui estimativas numéricas que relacionam a intensidade da poluição a potenciais riscos e medidas para reduzir as ameaças de risco à vida, à propriedade e ao ambiente - apresenta diversas deficiências. A principal delas é não levar em conta como as populações percebem e convivem com tais riscos.
Governança de risco
A discussão sobre comunicação de risco enseja a abordagem de um outro tema - governança do risco. Entende-se por governança um novo arranjo institucional no qual o processo decisório é coletivo, envolvendo atores governamentais e não governamentais. Na governança do risco, a forma como as informações são coletadas, analisadas e comunicadas estão no centro da atenção, assim como a idéia de que o conhecimento leigo não é irracional e de que os julgamentos de valor estão presentes em todas as fases do processo de avaliação e gestão de risco, por parte dos especialistas e do público.
Apesar das críticas quanto ao emprego da palavra governança (com diferentes significados e usada para diferentes situações), o termo governança do risco é adotado com base na idéia de um processo decisório democrático e participativo relacionado ao gerenciamento do risco, entendendo participação como o compartilhamento do poder decisório do Estado em relação às questões de interesse público e como condição necessária para assegurar que as instituições governamentais atuem de forma responsável perante seus cidadãos, criando possibilidades para que indivíduos e grupos influenciem as decisões que os afetam (promovendo assim competência e capacidade para isso) e contribuindo para a estabilidade do sistema democrático.
Em situações de risco, a prática de um processo decisório mais aberto e participativo, que inclua de fato as percepções, necessidades e interesses das comunidades afetadas, tem-se mostrado cada vez mais relevante. As justificativas estão embasadas na premissa de que, quanto mais envolvida estiver uma comunidade no processo decisório, maior será a possibilidade de preservação do ambiente local, maior é a possibilidade de induzir o público geral a agir individualmente ou coletivamente para reduzir o risco e maiores serão as chances de evitar que uma determinada comunidade ou local sejam estigmatizados em decorrência dos riscos que enfrenta. Os pesquisadores James Flynn e Paul Paul, autores do artigo “Avaliações dos peritos e do público acerca dos riscos tecnológicos” (referência abaixo), reconhecem que, no nível prático, o envolvimento do público pode melhorar a relevância e a qualidade das análises técnicas e, sobretudo, pode aumentar a legitimidade e a aceitação pública das decisões finais.
A participação de uma comunidade na discussão dos seus problemas e na elaboração de possíveis ações também tem implicação direta no desenvolvimento de potenciais democráticos. Mesmo que os desejos e aspirações dessa comunidade não sejam plenamente alcançados no enfrentamento do risco, o fato de algumas pessoas se envolverem, participarem do debate e se unirem em modelos associativos a partir de um projeto político em comum, por si só, já é um ganho. Representa a chance de desenvolver, naquela comunidade, capacidades pessoais de análise e argumentação, o exercício de deliberação, a tolerância e a solidariedade.
Essa participação pode acontecer através de exercícios de consulta aos cidadãos (consulta pública, debate público e uso de grupos focais para definição de políticas públicas), avaliação participativa de tecnologias (com as conferências de consenso ou de cidadãos, fóruns de discussão e júri de cidadãos), desenvolvimento participativo de tecnologias, investigação participativa, entre outros. Essas formas de participação, como observa o pesquisador português Boaventura de Souza Santos, da Universidade de Coimbra, podem aparecer em versões que reforcem os modos hegemônicos de conhecimento e de exercício do poder político, organizadas de “cima para baixo”. Mas podem surgir também sob formas contra-hegemônicas, organizadas de “baixo para cima” com critérios mais amplos de inclusão. De todo modo, para que o enfrentamento do risco seja participativo e democrático é importante que os grupos cujos interesses são afetados e estão em pauta estejam bem representados nos processos decisórios.
No enfrentamento dos riscos, a participação dos cidadãos mais do que um direito é uma necessidade. Como são agentes conhecedores (porque convivem com os riscos e enfrentam as diversas conseqüências advindas deles), esses indivíduos são capazes de discutir os problemas e de lutar para que o poder de pensamento e ação para definir o que será feito para resolver ou mitigar os problemas que vivenciam não fique apenas nas mãos dos stakeholders da ciência, da política e da economia. Para isso, a prática de uma comunicação de risco que, de fato, considere os elementos sociais, culturais e econômicos envolvidos, parta do pressuposto de que aquelas pessoas afetadas pelas decisões devem estar envolvidas no processo de sugestões e escolhas de alternativas e instaure uma estratégia aberta e coletiva de produção de conhecimento é fundamental. É preciso, como lembra o pesquisador Boaventura de Souza Santos, construir uma rede de intervenção, na qual todas as formas de conhecimento - técnico, leigo, tradicional, local - possam construtivamente participar em função da sua relevância para a situação em causa.
Breve comentário sobre a experiência internacional no tema
Nos Estados Unidos, em situações de risco relacionadas à contaminação ambiental e exposição humana a substâncias perigosas, a prática da comunicação de risco é motivada e, geralmente, ocorre como resultado das leis e regulamentações existentes. Exemplo disso é a lei federal conhecida como Cercla (abreviatura em inglês de Comprehensive Environmental Response, Compensation and Liability Act), que criou a taxa do Superfund para ser usada para investigar e limpar sítios com resíduos perigosos abandonados ou sem controle. A lei requer, dentro dos procedimentos de avaliação de risco, que as relações com a comunidade sejam levadas em conta. Na prática, há a necessidade de haver um plano de relações com a comunidade que incorpore a obtenção de informação sobre o lugar, os interesses dos moradores em relação às ações de remediação, suas crenças e preocupações sobre o local onde vivem e métodos de comunicação que serão usados para envolver o público no processo de recuperação da área.
Na Europa, embora os países respondam de maneira particular aos diversos aspectos e gestão de áreas contaminadas, há uma concordância em alguns princípios fundamentais, como o princípio do poluidor pagador, e há também um direcionamento para a promoção de um debate mais aberto que, de fato, dê maior atenção aos conhecimentos tidos como tradicionais e às experiências locais. Países como o Reino Unido e a França já contam com legislação que estabelece como necessária a obtenção de input do público antes que sejam tomadas decisões em áreas de incertezas.
O Brasil, entretanto, apesar de possuir uma ampla legislação em aspectos ambientais, esta, muita vezes, não é levada a termo. Sobre áreas contaminadas especificamente, o país não tem desenvolvido uma legislação específica, recorrendo a normas legais que indiretamente estão regulando a gestão de sítios contaminados por resíduos perigosos. No caso de resíduos perigosos à saúde humana, o Ministério da Saúde aplica, desde 2002, a metodologia de avaliação de risco da Agência de Registro de Substâncias Tóxicas e Controle de Doenças (ATSDR, na sigla em inglês).
A metodologia da ATSDR inclui avaliação da informação do local, respostas às preocupações da comunidade, seleção dos contaminantes de interesse, identificação e avaliação das rotas de exposição, caracterização das implicações para a saúde e conclusões e recomendações. Segundo documento do Ministério da Saúde, ao término do estudo de avaliação de risco a equipe de investigadores, seguindo a metodologia, deve fazer uma reunião com a população, com o objetivo de transmitir todo o conteúdo dos estudos.
No caso da avaliação de risco de contaminantes ambientais, a referência no Brasil são os procedimentos adotados e divulgados pela Companhia de Tecnologia e Saneamento Ambiental (Cetesb) do estado de São Paulo. A Cetesb foi o primeiro órgão ambiental a introduzir o tema da avaliação de riscos em nível nacional e o primeiro a criar uma unidade específica para tratar do assunto. O interesse pela avaliação de risco foi motivado pelo acidente em Cubatão, em 1984. A partir daí, a Cetesb passou a incorporar estudos de análise de riscos no processo de licenciamento ambiental, visando a prevenção de grandes acidentes e, em 1990, editou o Manual de Orientação para Elaboração de Estudos de Análise de Riscos, que passou por duas revisões, em 1994 e em 2000. Apesar da relevância das orientações da Cetesb quanto à prática da avaliação e gerenciamento de risco, observa-se que no Brasil a discussão sobre comunicação de risco e sobre a necessidade de envolver a comunidade, em situações de risco ambiental, ainda é escassa.
Gabriela Marques Di Giulio é jornalista e mestre em política científica e tecnológica e é doutoranda em ambiente e sociedade, ambos pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Bernardino Ribeiro Figueiredo é geólogo e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp.
Lúcia da Costa Ferreira é ecóloga, doutora em ciências sociais e pesquisadora do Nepam.
Para saber mais:
-Brasil. 2006. Diretrizes para elaboração de estudo de avaliação de risco à saúde humana por exposição a contaminantes químicos. http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/diretrizes_%20avaliacao_%20de_%20risco.pdf
- Flynn, J. & Slovic, P. 2000. “Avaliações dos peritos e do público acerca dos riscos tecnológicos”. In: Gonçalves, M.E. (org). Cultura científica e participação pública. Celta Editora, Oeiras, p. 109-128.
- Guivant, J.S. 2004. A governança dos riscos e os desafios para a redefinição da arena pública do Brasil. In: Ciência, tecnologia + sociedade. Novos modelos de governança. Brasília, 06 a 11 de dezembro. http://www.nisra.ufsc.br/pdf/A%20governa%5B1%5D…pdf
- Kasperson, R. et al. 2005. “The social amplification of risk: a conceptual framework”. In: Kasperson, J. & Kasperson, R.. The social contours of risk: publics, risk communication and the social amplification of risk. London: Earthscan. p. 99-114.
- Santos, B.S.(org). 2005. Semear outras soluções - os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
(Publicado originalmente pela revista Com Ciência)
A boa, necessária e sustentável conversa
Bernadete Almeida*
O espaço que os temas sustentabilidade e responsabilidade social têm ocupado na mídia , na agenda estratégica das empresas e nas escolas de negócio tem permitido o resgate de alguns conceitos , entre eles, o de diálogo.
Falar de diálogo é falar de relação, de interação entre diferentes entes sociais, a partir de perspectivas diversas, mas num espaço - geográfico, virtual e institucional - comum. No dito “mundo corporativo”, este conceito tem remetido, usualmente, à noção de engajamento de partes interessadas, entendida como a ação deliberada e necessária das empresas de se relacionarem, de maneira contínua, intencional e conseqüente com os vários segmentos da sociedade que afetam , são ou se sentam afetados pelas suas atividades. E ainda, considerando, em maior ou menor grau, a perspectiva destes grupos na condução de suas atividades.
Portanto, não dá para falar em gestão responsável e sustentável - conceito menos desgastado do que a Responsabilidade Social Corporativa, prestes a ser alçada à panacéia da hora, tal o uso indiscriminado do termo - sem falar em responsabilidade e sustentabilidade nas e das relações . E não há relação responsável, conseqüente e sustentável sem uma boa conversa, literalmente.
Mas, afinal , em que consiste uma boa conversa? Em se tratando das corporações - privadas ou não - que atributos acreditamos que o diálogo social deva ter?
A primeira variável , absolutamente determinante, diz respeito às atividades das empresas e o quanto estas impactam - positiva e negativamente - os territórios onde elas atuam. Em segmentos onde as operações se dão por meio de forte ancoragem territorial , gerando intervenções - inclusive, físicas - significativas , como é o caso da siderurgia, papel e celulose e da mineração, para ficarmos em apenas alguns exemplos, emergem as comunidades vizinhas às unidades de produção como um dos atores mais estratégicos e sensíveis do processo de diálogo social.
Numa visão que preconiza a sustentabilidade das relações e negócios, a dimensão dialógica , no entanto, não se dá isoladamente, mas integrada a outras duas variáveis: a gestão dos impactos e o investimento social, determinando também o contexto onde a relação entre empresa e comunidades se estabelece.
As empresas gerenciam adequadamente os impactos - negativos e positivos - decorrentes de sua operação quando previnem, minimizam , mitigam e compensam danos, sejam eles de natureza ambiental ou social, mas também quando potencializam os efeitos benéficos de um empreendimento uma dada região, como quando desenvolvem mão de obra e fornecedores locais, por exemplo. Quanto ao investimento social privado , o que for relevante e necessário para as comunidades, assim como estratégico para a empresa, é o que tenderá a gerar transformação e desenvolvimento local, de fato e que se perpetua no tempo.
Neste sentido, é importante observarmos que estas variáveis se articulam , de modo que o diálogo social , por exemplo, pode e deve evidenciar junto à comunidade o gerenciamento dos impactos - este precisa ser feito e comunicado - assim como o investimento social deveria ser , idealmente, precedido do engajamento não só do poder público, mas de outros segmentos representativos da comunidade, de modo a ser apropriado, pela comunidade, que passa a se perceber como co-partícipe e co-responsável pelo êxito das ações decorrentes do mesmo.
No sentido inverso, não há diálogo social que contorne ou minimize tensões no médio e longo prazos se as questões que são caras à comunidade - especialmente as decorrentes de impactos gerados - não são devidamente encaminhadas e tratadas pelas empresas. Relação é fala e gesto. E no contexto da Gestão responsável não seria diferente.
Cabe resgatar aqui, mais um conceito central: o de empatia, que é a capacidade de se colocar no lugar do outro. Quanto maiores e mais complexas forem as organizações, mais este será um desafio: as organizações definem seus valores , mas deverão entendê-los menos na sua dimensão absoluta e mais na articulação com os valores do “outro” , seja este outro o representante da combativa ONG, o líder da comunidade tradicional vizinha à operação ou o editor do principal jornal da cidade.
E por fim, cabe aqui uma distinção necessária entre as perspectivas mediática e dialógica da comunicação com comunidades. Há que se preconizar o esforço em direção a uma abordagem mais relacional e menos instrumental. Projetos em rádios AM, sim, mas sem abrir mão dos canais de comunicação direta. “Espetáculos mobilizadores” e abordagens segmentadas, ambos devem ter seu espaço garantido. Comunicação de mão única, de mão dupla e painéis intersetoriais, interação e interatividade … mas, sobretudo, tenhamos em mente, o objetivo de se resgatar , por meio do diálogo social, a humanidade e singularidade que tão bem distinguem , desde os primórdios, a comunicação como ato e processo.
* Bernadete Almeida integra o grupo de colunistas fixos de Plurale. É jornalista (PUC-Rio), especialista em Comunicação Integrada e em Gestão Estratégica da Responsabilidade Social Corporativa, com larga experiência na condução de processos de Diálogo Social e engajamento de partes interessadas. Atuou como gestora na área de Comunicação na Vale, é consultora, professora da Universidade Cândido Mendes e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-Rio).
(Plurale)
O espaço que os temas sustentabilidade e responsabilidade social têm ocupado na mídia , na agenda estratégica das empresas e nas escolas de negócio tem permitido o resgate de alguns conceitos , entre eles, o de diálogo.
Falar de diálogo é falar de relação, de interação entre diferentes entes sociais, a partir de perspectivas diversas, mas num espaço - geográfico, virtual e institucional - comum. No dito “mundo corporativo”, este conceito tem remetido, usualmente, à noção de engajamento de partes interessadas, entendida como a ação deliberada e necessária das empresas de se relacionarem, de maneira contínua, intencional e conseqüente com os vários segmentos da sociedade que afetam , são ou se sentam afetados pelas suas atividades. E ainda, considerando, em maior ou menor grau, a perspectiva destes grupos na condução de suas atividades.
Portanto, não dá para falar em gestão responsável e sustentável - conceito menos desgastado do que a Responsabilidade Social Corporativa, prestes a ser alçada à panacéia da hora, tal o uso indiscriminado do termo - sem falar em responsabilidade e sustentabilidade nas e das relações . E não há relação responsável, conseqüente e sustentável sem uma boa conversa, literalmente.
Mas, afinal , em que consiste uma boa conversa? Em se tratando das corporações - privadas ou não - que atributos acreditamos que o diálogo social deva ter?
A primeira variável , absolutamente determinante, diz respeito às atividades das empresas e o quanto estas impactam - positiva e negativamente - os territórios onde elas atuam. Em segmentos onde as operações se dão por meio de forte ancoragem territorial , gerando intervenções - inclusive, físicas - significativas , como é o caso da siderurgia, papel e celulose e da mineração, para ficarmos em apenas alguns exemplos, emergem as comunidades vizinhas às unidades de produção como um dos atores mais estratégicos e sensíveis do processo de diálogo social.
Numa visão que preconiza a sustentabilidade das relações e negócios, a dimensão dialógica , no entanto, não se dá isoladamente, mas integrada a outras duas variáveis: a gestão dos impactos e o investimento social, determinando também o contexto onde a relação entre empresa e comunidades se estabelece.
As empresas gerenciam adequadamente os impactos - negativos e positivos - decorrentes de sua operação quando previnem, minimizam , mitigam e compensam danos, sejam eles de natureza ambiental ou social, mas também quando potencializam os efeitos benéficos de um empreendimento uma dada região, como quando desenvolvem mão de obra e fornecedores locais, por exemplo. Quanto ao investimento social privado , o que for relevante e necessário para as comunidades, assim como estratégico para a empresa, é o que tenderá a gerar transformação e desenvolvimento local, de fato e que se perpetua no tempo.
Neste sentido, é importante observarmos que estas variáveis se articulam , de modo que o diálogo social , por exemplo, pode e deve evidenciar junto à comunidade o gerenciamento dos impactos - este precisa ser feito e comunicado - assim como o investimento social deveria ser , idealmente, precedido do engajamento não só do poder público, mas de outros segmentos representativos da comunidade, de modo a ser apropriado, pela comunidade, que passa a se perceber como co-partícipe e co-responsável pelo êxito das ações decorrentes do mesmo.
No sentido inverso, não há diálogo social que contorne ou minimize tensões no médio e longo prazos se as questões que são caras à comunidade - especialmente as decorrentes de impactos gerados - não são devidamente encaminhadas e tratadas pelas empresas. Relação é fala e gesto. E no contexto da Gestão responsável não seria diferente.
Cabe resgatar aqui, mais um conceito central: o de empatia, que é a capacidade de se colocar no lugar do outro. Quanto maiores e mais complexas forem as organizações, mais este será um desafio: as organizações definem seus valores , mas deverão entendê-los menos na sua dimensão absoluta e mais na articulação com os valores do “outro” , seja este outro o representante da combativa ONG, o líder da comunidade tradicional vizinha à operação ou o editor do principal jornal da cidade.
E por fim, cabe aqui uma distinção necessária entre as perspectivas mediática e dialógica da comunicação com comunidades. Há que se preconizar o esforço em direção a uma abordagem mais relacional e menos instrumental. Projetos em rádios AM, sim, mas sem abrir mão dos canais de comunicação direta. “Espetáculos mobilizadores” e abordagens segmentadas, ambos devem ter seu espaço garantido. Comunicação de mão única, de mão dupla e painéis intersetoriais, interação e interatividade … mas, sobretudo, tenhamos em mente, o objetivo de se resgatar , por meio do diálogo social, a humanidade e singularidade que tão bem distinguem , desde os primórdios, a comunicação como ato e processo.
* Bernadete Almeida integra o grupo de colunistas fixos de Plurale. É jornalista (PUC-Rio), especialista em Comunicação Integrada e em Gestão Estratégica da Responsabilidade Social Corporativa, com larga experiência na condução de processos de Diálogo Social e engajamento de partes interessadas. Atuou como gestora na área de Comunicação na Vale, é consultora, professora da Universidade Cândido Mendes e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-Rio).
(Plurale)
As crises ensinam muito, principalmente a prestar atenção aos sinais
Graziela Wolfart e Patricia Fachin, do IHU On-Line
“Não basta mudar, tem que mudar rápido. E, para isso, é preciso muito dinheiro, muito financiamento, crédito, é preciso movimentar o capital na direção do mundo com menos carbono. E não apenas isso. O mundo deve estar preparado para o pior.” O alerta é do jornalista André Trigueiro, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, ao refletir sobre as crises ecológica e financeira que assolam o Planeta. Precisamos ter, segundo ele, dois movimentos: “redução das emissões do setor de energia, petróleo, carvão e gás, manejo adequado do lixo e políticas de proteção de fl orestas; e uma grande política de pesquisa que revele quais os impactos inevitáveis e, em função deles, quais as providências que as autoridades devem tomar agora, porque não adianta esperar acontecer o pior para fazer o que se deve. É preciso ter responsabilidade”. Trigueiro identifica na sociedade uma dificuldade de assumir novas posturas e de “perceber que o século XXI está trazendo demandas importantes, graves, que exigem de gestores públicos, privados e do cidadão a devida atenção, porque são escolhas que precisamos fazer rápido. Estamos promovendo uma escalada de depredação dos recursos naturais que tem custado caro, estamos fazendo do Planeta um lugar hostil”.
André Trigueiro é jornalista, pós-graduado em Gestão Ambiental pela COOPE/UFRJ e professor do curso de Jornalismo Ambiental da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Na Globo News, apresenta o programa “Cidades e soluções”, tratando da questão do meio ambiente. É autor de Mundo sustentável (São Paulo: Globo, 2005).
IHU On-Line - Que relações o senhor estabelece entre a crise financeira internacional e a crise ambiental em nosso Planeta? Como entender que as reservas energéticas não detêm poder de barganha nas negociações financeiras?
André Trigueiro - Em primeiro lugar, a crise financeira revela um movimento não sustentável de acumulação de capital que foi gerido com a única intenção de promover maximização de lucro no menor intervalo de tempo possível. Como se sabe, isso resultou numa bolha especulativa, que acabou determinando uma crise financeira com repercussões graves na economia global. Esse é o resumo da ópera dessa crise. Quando observo o movimento de socorro dos bancos centrais do mundo e dos governos na direção das instituições em situação precária e o esforço global para promover o crédito e o fi nanciamento, me impressiono com o volume sem precedentes de recursos rapidamente disponibilizados para esse fim. E faço a constatação dura, vexatória, de que esse volume de recursos supera, em muito, a quantidade de dinheiro estimada pelo ex-economista chefe do banco mundial, Nicholas Stern, que sugeriu, no relatório lançado em outubro de 2006, que o mundo destinasse 1% do PIB para inovação tecnológica e para investimentos em energia limpa e renovável. Tudo para que nós, num prazo de 30 a 40 anos, conseguíssemos reduzir, ao máximo, os efeitos mais desastrosos do aquecimento global. Stern reviu a conta e disse que deveria, na verdade, ser o dobro, ou seja, 2% do PIB global. O que vimos nas últimas semanas supera em muito essa projeção. Quando há vontade política, foco e determinação, a humanidade resolve problemas, consegue canalizar recursos na direção que lhe interessa. Por um lado, acho positiva a capacidade de articulação de diferentes países tentando reduzir estragos causados pela crise fi nanceira, mas, por outro, percebo, de forma perplexa, que um assunto que já deveria estar inspirando cuidados extremos não mobilizou com a mesmo intensidade a comunidade internacional.
IHU On-Line - Quais os principais problemas socioeconômicos que o senhor aponta como conseqüência das mudanças climáticas?
André Trigueiro - São vários. O primeiro deles é que, se nada for feito, se continuarmos agindo de forma leniente e irresponsável na gestão desta crise climática, o cenário previsto é o de economias desvalidas, como a da época do crack de 1929 ou das duas grandes guerras mundiais, ou seja, cenário de terra arrasada. Acompanhamos uma mudança grave na fertilidade de certas áreas do Planeta, na capacidade de produzir grãos, num cenário difícil de indisponibilidade do solo para certas culturas e isso num mundo em que a população cresce (esse ano serão mais 73 milhões de pessoas). O aquecimento global entra agravando esse cenário. Outro problema é o do refugiado ambiental. Segundo a previsão do IPCC, extensas áreas do Planeta, principalmente aquelas onde a população se concentra no litoral dos países, se tornarão indisponíveis para moradia, e os países mais pobres irão sofrer as conseqüências mais devastadoras. Qualquer elevação de um centímetro no nível do mar significa um avanço de água salgada em grandes extensões de terra, causando outros problemas, como, por exemplo, a indisponibilidade de água doce para abastecimento, pois os mananciais ficam comprometidos. Então, temos um efeito cascata, danoso, nesse sentido.
A temperatura dos oceanos e as chuvas
Uma outra questão é que a elevação da temperatura média dos oceanos provoca a morte dos corais e isso tem um forte abalo sobre os ecossistemas marinhos. Além disso, alguns estudos indicam que certos fenômenos climáticos, como esse temporal atípico que castiga Santa Catarina, teriam também alguma relação com uma pequena elevação da temperatura média dos oceanos nessa época do ano. Outra conseqüência grave é a mudança do ciclo da chuva. Temos a difi culdade de conseguir mapear com um mínimo de precisão o comportamento da chuva. Nas áreas onde era comum chover muito no verão, não há mais essa expectativa. No Brasil, as áreas mais castigadas com a mudança radical do clima serão a Amazônia e o semi-árido nordestino. Este deixaria de ser “semi” e passaria a ser uma área desértica, árida, aumentando a dúvida sobre a pertinência de construir um sistema de transporte de água do Rio São Francisco. Isso precisa ser analisado com mais atenção. E, na Amazônia, a confi guração da floresta deverá passar para uma configuração de savana.
Geleiras e aumento do nível do mar
O degelo ocorre hoje com maior velocidade do que as próprias previsões do IPCC, surpreendendo os cientistas. Alguns cálculos estão sendo refeitos no sentido de testar a modelagem usada para previsões. O que estava previsto para acontecer mais na frente pode acontecer um pouco antes. Uma reengenharia política será necessária, e a eleição de Barack Obama sinaliza um futuro interessante nesse sentido, que é o de agirmos com maior agilidade e presteza. Não basta mudar, tem que mudar rápido. E, para isso, é preciso muito dinheiro, muito fi nanciamento, crédito, é preciso movimentar o capital na direção do mundo com menos carbono. E não apenas isso. O mundo deve estar preparado para o pior. Não basta reduzir emissões de carbono. Devemos ter, basicamente, dois movimentos: redução das emissões do setor de energia, petróleo, carvão e gás, manejo adequado do lixo e políticas de proteção de florestas; e uma grande política de pesquisa que revele quais os impactos inevitáveis e, em função deles, quais as providências que as autoridades devem tomar agora, porque não adianta esperar acontecer o pior para fazer o que deve. É necessário ter responsabilidade.
IHU On-Line - Podemos dizer que o Brasil possui um trunfo nesse momento de crise financeira internacional em relação às suas fontes de energia renováveis/limpas? O país pode se beneficiar com ambas as crises, considerando os recursos naturais que dispõe? O senhor acredita que o Brasil deveria mudar suas estratégias?
André Trigueiro - O Brasil, sem dúvida nenhuma, é um país privilegiado no que diz respeito a fontes de energia, lembrando que, majoritariamente, as fontes são limpas. O país tem uma configuração muito interessante, única no mundo e com um bônus, que é a possibilidade de diversificar ainda mais essa matriz de forma criativa e inovadora. No entanto, o aspecto preocupante é o seguinte: num recorte dos últimos três ou quatro anos, o licenciamento de novas fontes de energia que tem predominado é extremamente sujo. É muito mais fácil licenciar pequenas termelétricas a carvão, a óleo ou a gás do que grandes hidrelétricas. Estamos sujando a matriz energética. Segundo ponto: o Brasil marcou um gol (além do biodiesel, do etanol e das hidrelétricas) com o Proinfa, que é um programa do governo federal de incentivo às fontes alternativas de energia. Precisamos substituir o chuveiro elétrico. Não existe outro país do mundo com tanta gente tomando banho quente com chuveiro elétrico como no Brasil. Isso é um absurdo num país solar, onde 280 dias por ano são de sol. Não devemos ficar tão agoniados para construir grandes hidrelétricas e usinas nucleares se soubermos usar o que temos.
IHU On-Line - Como entender, a partir do que o senhor acaba de dizer, tanta euforia em torno do pré-sal? Por que ainda vivemos em uma cultura tão presa ao modelo de consumo, à lógica da sociedade industrial? Como o senhor explica essa aparente contradição?
André Trigueiro - A palavra “contradição” expressa bem esse rico momento da nossa história. Esse paradoxo está colocado com muita força. O velho e o novo se digladiam. Existe uma dificuldade de assumir novas posturas e perceber que o século XXI está trazendo demandas importantes, graves, que exigem de gestores públicos, privados e do cidadão a devida atenção, porque são escolhas que precisamos fazer rápido. Estamos promovendo uma escalada de depredação dos recursos naturais que tem custado caro, estamos fazendo do Planeta um lugar hostil. Nosso modelo de desenvolvimento foi descrito há 16 anos na Rio 92, nos seguintes termos: “O modelo de desenvolvimento é ecologicamente predatório, socialmente perverso e politicamente injusto”. É esse modelo que precisamos denunciar e para o qual precisamos sinalizar alternativas. Diversas coisas não são sustentáveis: a sociedade de consumo; o consumismo enquanto valor existencial; todo mundo ter um carro na garagem; manter o desperdício não apenas de energia ou de água, mas de alimentos. Nosso estilo de vida é perdulário, não temos noção do limite. Não respeitamos porque não conhecemos a capacidade de suporte do Planeta. Continuamos achando que ele tem tudo o que precisamos para sempre. O grande desafio é promovermos uma mudança de cultura. No entanto, não se muda isso por decreto. Há que se ter um tempo de decantação, com escolas, universidades, ONGs, igrejas, movimentos sociais, uma nova geração de gestores públicos, de empresários. Há um tempo em que haverá um descolamento gradual e progressivo de uma visão ultrapassada do que deva ser a ciência econômica, da necessidade dos países crescerem com metas de crescimento de PIB. Precisamos de desenvolvimento e isso se mede também pela qualidade de vida das pessoas, o que não se alcança onde há depredação dos recursos naturais na escala em que vemos. Mudar não é um capricho: é a condição para continuarmos existindo.
IHU On-Line - Então, é correto falar em desaceleração da economia e que o decrescimento será indispensável para a nossa sobrevivência?
André Trigueiro - Se existe um lado positivo desta crise, é que ela talvez possa ensinar alguns de nós que é possível viver bem com menos; eu diria até que é necessário menos para viver melhor e que talvez possamos descobrir outros motivos dignos, interessantes e atraentes para viver do que apenas respirar lucro. As crises ensinam muito, principalmente a prestar atenção aos sinais.
IHU On-Line - Então, com as crises, é possível pensar em outra economia, outro estilo de vida, uma outra civilização? E que modelo de energia o senhor sugere para essa outra sociedade ideal?
André Trigueiro - É evidente que o modelo de energia ideal seja aquele que determina a emissão zero de carbono, mas não se alcança isso rápido. Há um período de transição, precisamos considerar, que pode levar 10, 20, 30 anos. Ainda precisamos e dependemos muito de petróleo, carvão e gás. Mas o modelo ideal é o da energia limpa e renovável, com muita pesquisa na direção da inovação tecnológica, buscando no hidrogênio, na energia geotérmica, na energia das ondas do mar, do sol, do vento, da biomassa, como podemos diversificar ao máximo a matriz e consumir de forma inteligente. Não adianta sofisticar ou limpar a matriz energética se as pessoas não mudam os hábitos de consumo. Quando falamos de inclusão social, falamos de inserir as pessoas num mundo onde há dignidade na sociedade, num estilo de vida onde se possa dispor de uma casa, de educação, saúde, lazer, transporte adequado. Se quisermos promover inclusão social, teremos uma demanda muito grande de matéria prima energética. É importante lembrar que, hoje, 20% da humanidade consome 80% dos recursos. Essa conta não fecha se a elite do mundo não repensar hábitos de consumo. Mesmo ganhando bem, não precisamos gastar tudo nas compras. E não se promove essa guinada sem educação.
(IHU On-Line)
“Não basta mudar, tem que mudar rápido. E, para isso, é preciso muito dinheiro, muito financiamento, crédito, é preciso movimentar o capital na direção do mundo com menos carbono. E não apenas isso. O mundo deve estar preparado para o pior.” O alerta é do jornalista André Trigueiro, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, ao refletir sobre as crises ecológica e financeira que assolam o Planeta. Precisamos ter, segundo ele, dois movimentos: “redução das emissões do setor de energia, petróleo, carvão e gás, manejo adequado do lixo e políticas de proteção de fl orestas; e uma grande política de pesquisa que revele quais os impactos inevitáveis e, em função deles, quais as providências que as autoridades devem tomar agora, porque não adianta esperar acontecer o pior para fazer o que se deve. É preciso ter responsabilidade”. Trigueiro identifica na sociedade uma dificuldade de assumir novas posturas e de “perceber que o século XXI está trazendo demandas importantes, graves, que exigem de gestores públicos, privados e do cidadão a devida atenção, porque são escolhas que precisamos fazer rápido. Estamos promovendo uma escalada de depredação dos recursos naturais que tem custado caro, estamos fazendo do Planeta um lugar hostil”.
André Trigueiro é jornalista, pós-graduado em Gestão Ambiental pela COOPE/UFRJ e professor do curso de Jornalismo Ambiental da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Na Globo News, apresenta o programa “Cidades e soluções”, tratando da questão do meio ambiente. É autor de Mundo sustentável (São Paulo: Globo, 2005).
IHU On-Line - Que relações o senhor estabelece entre a crise financeira internacional e a crise ambiental em nosso Planeta? Como entender que as reservas energéticas não detêm poder de barganha nas negociações financeiras?
André Trigueiro - Em primeiro lugar, a crise financeira revela um movimento não sustentável de acumulação de capital que foi gerido com a única intenção de promover maximização de lucro no menor intervalo de tempo possível. Como se sabe, isso resultou numa bolha especulativa, que acabou determinando uma crise financeira com repercussões graves na economia global. Esse é o resumo da ópera dessa crise. Quando observo o movimento de socorro dos bancos centrais do mundo e dos governos na direção das instituições em situação precária e o esforço global para promover o crédito e o fi nanciamento, me impressiono com o volume sem precedentes de recursos rapidamente disponibilizados para esse fim. E faço a constatação dura, vexatória, de que esse volume de recursos supera, em muito, a quantidade de dinheiro estimada pelo ex-economista chefe do banco mundial, Nicholas Stern, que sugeriu, no relatório lançado em outubro de 2006, que o mundo destinasse 1% do PIB para inovação tecnológica e para investimentos em energia limpa e renovável. Tudo para que nós, num prazo de 30 a 40 anos, conseguíssemos reduzir, ao máximo, os efeitos mais desastrosos do aquecimento global. Stern reviu a conta e disse que deveria, na verdade, ser o dobro, ou seja, 2% do PIB global. O que vimos nas últimas semanas supera em muito essa projeção. Quando há vontade política, foco e determinação, a humanidade resolve problemas, consegue canalizar recursos na direção que lhe interessa. Por um lado, acho positiva a capacidade de articulação de diferentes países tentando reduzir estragos causados pela crise fi nanceira, mas, por outro, percebo, de forma perplexa, que um assunto que já deveria estar inspirando cuidados extremos não mobilizou com a mesmo intensidade a comunidade internacional.
IHU On-Line - Quais os principais problemas socioeconômicos que o senhor aponta como conseqüência das mudanças climáticas?
André Trigueiro - São vários. O primeiro deles é que, se nada for feito, se continuarmos agindo de forma leniente e irresponsável na gestão desta crise climática, o cenário previsto é o de economias desvalidas, como a da época do crack de 1929 ou das duas grandes guerras mundiais, ou seja, cenário de terra arrasada. Acompanhamos uma mudança grave na fertilidade de certas áreas do Planeta, na capacidade de produzir grãos, num cenário difícil de indisponibilidade do solo para certas culturas e isso num mundo em que a população cresce (esse ano serão mais 73 milhões de pessoas). O aquecimento global entra agravando esse cenário. Outro problema é o do refugiado ambiental. Segundo a previsão do IPCC, extensas áreas do Planeta, principalmente aquelas onde a população se concentra no litoral dos países, se tornarão indisponíveis para moradia, e os países mais pobres irão sofrer as conseqüências mais devastadoras. Qualquer elevação de um centímetro no nível do mar significa um avanço de água salgada em grandes extensões de terra, causando outros problemas, como, por exemplo, a indisponibilidade de água doce para abastecimento, pois os mananciais ficam comprometidos. Então, temos um efeito cascata, danoso, nesse sentido.
A temperatura dos oceanos e as chuvas
Uma outra questão é que a elevação da temperatura média dos oceanos provoca a morte dos corais e isso tem um forte abalo sobre os ecossistemas marinhos. Além disso, alguns estudos indicam que certos fenômenos climáticos, como esse temporal atípico que castiga Santa Catarina, teriam também alguma relação com uma pequena elevação da temperatura média dos oceanos nessa época do ano. Outra conseqüência grave é a mudança do ciclo da chuva. Temos a difi culdade de conseguir mapear com um mínimo de precisão o comportamento da chuva. Nas áreas onde era comum chover muito no verão, não há mais essa expectativa. No Brasil, as áreas mais castigadas com a mudança radical do clima serão a Amazônia e o semi-árido nordestino. Este deixaria de ser “semi” e passaria a ser uma área desértica, árida, aumentando a dúvida sobre a pertinência de construir um sistema de transporte de água do Rio São Francisco. Isso precisa ser analisado com mais atenção. E, na Amazônia, a confi guração da floresta deverá passar para uma configuração de savana.
Geleiras e aumento do nível do mar
O degelo ocorre hoje com maior velocidade do que as próprias previsões do IPCC, surpreendendo os cientistas. Alguns cálculos estão sendo refeitos no sentido de testar a modelagem usada para previsões. O que estava previsto para acontecer mais na frente pode acontecer um pouco antes. Uma reengenharia política será necessária, e a eleição de Barack Obama sinaliza um futuro interessante nesse sentido, que é o de agirmos com maior agilidade e presteza. Não basta mudar, tem que mudar rápido. E, para isso, é preciso muito dinheiro, muito fi nanciamento, crédito, é preciso movimentar o capital na direção do mundo com menos carbono. E não apenas isso. O mundo deve estar preparado para o pior. Não basta reduzir emissões de carbono. Devemos ter, basicamente, dois movimentos: redução das emissões do setor de energia, petróleo, carvão e gás, manejo adequado do lixo e políticas de proteção de florestas; e uma grande política de pesquisa que revele quais os impactos inevitáveis e, em função deles, quais as providências que as autoridades devem tomar agora, porque não adianta esperar acontecer o pior para fazer o que deve. É necessário ter responsabilidade.
IHU On-Line - Podemos dizer que o Brasil possui um trunfo nesse momento de crise financeira internacional em relação às suas fontes de energia renováveis/limpas? O país pode se beneficiar com ambas as crises, considerando os recursos naturais que dispõe? O senhor acredita que o Brasil deveria mudar suas estratégias?
André Trigueiro - O Brasil, sem dúvida nenhuma, é um país privilegiado no que diz respeito a fontes de energia, lembrando que, majoritariamente, as fontes são limpas. O país tem uma configuração muito interessante, única no mundo e com um bônus, que é a possibilidade de diversificar ainda mais essa matriz de forma criativa e inovadora. No entanto, o aspecto preocupante é o seguinte: num recorte dos últimos três ou quatro anos, o licenciamento de novas fontes de energia que tem predominado é extremamente sujo. É muito mais fácil licenciar pequenas termelétricas a carvão, a óleo ou a gás do que grandes hidrelétricas. Estamos sujando a matriz energética. Segundo ponto: o Brasil marcou um gol (além do biodiesel, do etanol e das hidrelétricas) com o Proinfa, que é um programa do governo federal de incentivo às fontes alternativas de energia. Precisamos substituir o chuveiro elétrico. Não existe outro país do mundo com tanta gente tomando banho quente com chuveiro elétrico como no Brasil. Isso é um absurdo num país solar, onde 280 dias por ano são de sol. Não devemos ficar tão agoniados para construir grandes hidrelétricas e usinas nucleares se soubermos usar o que temos.
IHU On-Line - Como entender, a partir do que o senhor acaba de dizer, tanta euforia em torno do pré-sal? Por que ainda vivemos em uma cultura tão presa ao modelo de consumo, à lógica da sociedade industrial? Como o senhor explica essa aparente contradição?
André Trigueiro - A palavra “contradição” expressa bem esse rico momento da nossa história. Esse paradoxo está colocado com muita força. O velho e o novo se digladiam. Existe uma dificuldade de assumir novas posturas e perceber que o século XXI está trazendo demandas importantes, graves, que exigem de gestores públicos, privados e do cidadão a devida atenção, porque são escolhas que precisamos fazer rápido. Estamos promovendo uma escalada de depredação dos recursos naturais que tem custado caro, estamos fazendo do Planeta um lugar hostil. Nosso modelo de desenvolvimento foi descrito há 16 anos na Rio 92, nos seguintes termos: “O modelo de desenvolvimento é ecologicamente predatório, socialmente perverso e politicamente injusto”. É esse modelo que precisamos denunciar e para o qual precisamos sinalizar alternativas. Diversas coisas não são sustentáveis: a sociedade de consumo; o consumismo enquanto valor existencial; todo mundo ter um carro na garagem; manter o desperdício não apenas de energia ou de água, mas de alimentos. Nosso estilo de vida é perdulário, não temos noção do limite. Não respeitamos porque não conhecemos a capacidade de suporte do Planeta. Continuamos achando que ele tem tudo o que precisamos para sempre. O grande desafio é promovermos uma mudança de cultura. No entanto, não se muda isso por decreto. Há que se ter um tempo de decantação, com escolas, universidades, ONGs, igrejas, movimentos sociais, uma nova geração de gestores públicos, de empresários. Há um tempo em que haverá um descolamento gradual e progressivo de uma visão ultrapassada do que deva ser a ciência econômica, da necessidade dos países crescerem com metas de crescimento de PIB. Precisamos de desenvolvimento e isso se mede também pela qualidade de vida das pessoas, o que não se alcança onde há depredação dos recursos naturais na escala em que vemos. Mudar não é um capricho: é a condição para continuarmos existindo.
IHU On-Line - Então, é correto falar em desaceleração da economia e que o decrescimento será indispensável para a nossa sobrevivência?
André Trigueiro - Se existe um lado positivo desta crise, é que ela talvez possa ensinar alguns de nós que é possível viver bem com menos; eu diria até que é necessário menos para viver melhor e que talvez possamos descobrir outros motivos dignos, interessantes e atraentes para viver do que apenas respirar lucro. As crises ensinam muito, principalmente a prestar atenção aos sinais.
IHU On-Line - Então, com as crises, é possível pensar em outra economia, outro estilo de vida, uma outra civilização? E que modelo de energia o senhor sugere para essa outra sociedade ideal?
André Trigueiro - É evidente que o modelo de energia ideal seja aquele que determina a emissão zero de carbono, mas não se alcança isso rápido. Há um período de transição, precisamos considerar, que pode levar 10, 20, 30 anos. Ainda precisamos e dependemos muito de petróleo, carvão e gás. Mas o modelo ideal é o da energia limpa e renovável, com muita pesquisa na direção da inovação tecnológica, buscando no hidrogênio, na energia geotérmica, na energia das ondas do mar, do sol, do vento, da biomassa, como podemos diversificar ao máximo a matriz e consumir de forma inteligente. Não adianta sofisticar ou limpar a matriz energética se as pessoas não mudam os hábitos de consumo. Quando falamos de inclusão social, falamos de inserir as pessoas num mundo onde há dignidade na sociedade, num estilo de vida onde se possa dispor de uma casa, de educação, saúde, lazer, transporte adequado. Se quisermos promover inclusão social, teremos uma demanda muito grande de matéria prima energética. É importante lembrar que, hoje, 20% da humanidade consome 80% dos recursos. Essa conta não fecha se a elite do mundo não repensar hábitos de consumo. Mesmo ganhando bem, não precisamos gastar tudo nas compras. E não se promove essa guinada sem educação.
(IHU On-Line)
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