Graziela Wolfart e Patricia Fachin, do IHU On-Line
“Não basta mudar, tem que mudar rápido. E, para isso, é preciso muito dinheiro, muito financiamento, crédito, é preciso movimentar o capital na direção do mundo com menos carbono. E não apenas isso. O mundo deve estar preparado para o pior.” O alerta é do jornalista André Trigueiro, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, ao refletir sobre as crises ecológica e financeira que assolam o Planeta. Precisamos ter, segundo ele, dois movimentos: “redução das emissões do setor de energia, petróleo, carvão e gás, manejo adequado do lixo e políticas de proteção de fl orestas; e uma grande política de pesquisa que revele quais os impactos inevitáveis e, em função deles, quais as providências que as autoridades devem tomar agora, porque não adianta esperar acontecer o pior para fazer o que se deve. É preciso ter responsabilidade”. Trigueiro identifica na sociedade uma dificuldade de assumir novas posturas e de “perceber que o século XXI está trazendo demandas importantes, graves, que exigem de gestores públicos, privados e do cidadão a devida atenção, porque são escolhas que precisamos fazer rápido. Estamos promovendo uma escalada de depredação dos recursos naturais que tem custado caro, estamos fazendo do Planeta um lugar hostil”.
André Trigueiro é jornalista, pós-graduado em Gestão Ambiental pela COOPE/UFRJ e professor do curso de Jornalismo Ambiental da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Na Globo News, apresenta o programa “Cidades e soluções”, tratando da questão do meio ambiente. É autor de Mundo sustentável (São Paulo: Globo, 2005).
IHU On-Line - Que relações o senhor estabelece entre a crise financeira internacional e a crise ambiental em nosso Planeta? Como entender que as reservas energéticas não detêm poder de barganha nas negociações financeiras?
André Trigueiro - Em primeiro lugar, a crise financeira revela um movimento não sustentável de acumulação de capital que foi gerido com a única intenção de promover maximização de lucro no menor intervalo de tempo possível. Como se sabe, isso resultou numa bolha especulativa, que acabou determinando uma crise financeira com repercussões graves na economia global. Esse é o resumo da ópera dessa crise. Quando observo o movimento de socorro dos bancos centrais do mundo e dos governos na direção das instituições em situação precária e o esforço global para promover o crédito e o fi nanciamento, me impressiono com o volume sem precedentes de recursos rapidamente disponibilizados para esse fim. E faço a constatação dura, vexatória, de que esse volume de recursos supera, em muito, a quantidade de dinheiro estimada pelo ex-economista chefe do banco mundial, Nicholas Stern, que sugeriu, no relatório lançado em outubro de 2006, que o mundo destinasse 1% do PIB para inovação tecnológica e para investimentos em energia limpa e renovável. Tudo para que nós, num prazo de 30 a 40 anos, conseguíssemos reduzir, ao máximo, os efeitos mais desastrosos do aquecimento global. Stern reviu a conta e disse que deveria, na verdade, ser o dobro, ou seja, 2% do PIB global. O que vimos nas últimas semanas supera em muito essa projeção. Quando há vontade política, foco e determinação, a humanidade resolve problemas, consegue canalizar recursos na direção que lhe interessa. Por um lado, acho positiva a capacidade de articulação de diferentes países tentando reduzir estragos causados pela crise fi nanceira, mas, por outro, percebo, de forma perplexa, que um assunto que já deveria estar inspirando cuidados extremos não mobilizou com a mesmo intensidade a comunidade internacional.
IHU On-Line - Quais os principais problemas socioeconômicos que o senhor aponta como conseqüência das mudanças climáticas?
André Trigueiro - São vários. O primeiro deles é que, se nada for feito, se continuarmos agindo de forma leniente e irresponsável na gestão desta crise climática, o cenário previsto é o de economias desvalidas, como a da época do crack de 1929 ou das duas grandes guerras mundiais, ou seja, cenário de terra arrasada. Acompanhamos uma mudança grave na fertilidade de certas áreas do Planeta, na capacidade de produzir grãos, num cenário difícil de indisponibilidade do solo para certas culturas e isso num mundo em que a população cresce (esse ano serão mais 73 milhões de pessoas). O aquecimento global entra agravando esse cenário. Outro problema é o do refugiado ambiental. Segundo a previsão do IPCC, extensas áreas do Planeta, principalmente aquelas onde a população se concentra no litoral dos países, se tornarão indisponíveis para moradia, e os países mais pobres irão sofrer as conseqüências mais devastadoras. Qualquer elevação de um centímetro no nível do mar significa um avanço de água salgada em grandes extensões de terra, causando outros problemas, como, por exemplo, a indisponibilidade de água doce para abastecimento, pois os mananciais ficam comprometidos. Então, temos um efeito cascata, danoso, nesse sentido.
A temperatura dos oceanos e as chuvas
Uma outra questão é que a elevação da temperatura média dos oceanos provoca a morte dos corais e isso tem um forte abalo sobre os ecossistemas marinhos. Além disso, alguns estudos indicam que certos fenômenos climáticos, como esse temporal atípico que castiga Santa Catarina, teriam também alguma relação com uma pequena elevação da temperatura média dos oceanos nessa época do ano. Outra conseqüência grave é a mudança do ciclo da chuva. Temos a difi culdade de conseguir mapear com um mínimo de precisão o comportamento da chuva. Nas áreas onde era comum chover muito no verão, não há mais essa expectativa. No Brasil, as áreas mais castigadas com a mudança radical do clima serão a Amazônia e o semi-árido nordestino. Este deixaria de ser “semi” e passaria a ser uma área desértica, árida, aumentando a dúvida sobre a pertinência de construir um sistema de transporte de água do Rio São Francisco. Isso precisa ser analisado com mais atenção. E, na Amazônia, a confi guração da floresta deverá passar para uma configuração de savana.
Geleiras e aumento do nível do mar
O degelo ocorre hoje com maior velocidade do que as próprias previsões do IPCC, surpreendendo os cientistas. Alguns cálculos estão sendo refeitos no sentido de testar a modelagem usada para previsões. O que estava previsto para acontecer mais na frente pode acontecer um pouco antes. Uma reengenharia política será necessária, e a eleição de Barack Obama sinaliza um futuro interessante nesse sentido, que é o de agirmos com maior agilidade e presteza. Não basta mudar, tem que mudar rápido. E, para isso, é preciso muito dinheiro, muito fi nanciamento, crédito, é preciso movimentar o capital na direção do mundo com menos carbono. E não apenas isso. O mundo deve estar preparado para o pior. Não basta reduzir emissões de carbono. Devemos ter, basicamente, dois movimentos: redução das emissões do setor de energia, petróleo, carvão e gás, manejo adequado do lixo e políticas de proteção de florestas; e uma grande política de pesquisa que revele quais os impactos inevitáveis e, em função deles, quais as providências que as autoridades devem tomar agora, porque não adianta esperar acontecer o pior para fazer o que deve. É necessário ter responsabilidade.
IHU On-Line - Podemos dizer que o Brasil possui um trunfo nesse momento de crise financeira internacional em relação às suas fontes de energia renováveis/limpas? O país pode se beneficiar com ambas as crises, considerando os recursos naturais que dispõe? O senhor acredita que o Brasil deveria mudar suas estratégias?
André Trigueiro - O Brasil, sem dúvida nenhuma, é um país privilegiado no que diz respeito a fontes de energia, lembrando que, majoritariamente, as fontes são limpas. O país tem uma configuração muito interessante, única no mundo e com um bônus, que é a possibilidade de diversificar ainda mais essa matriz de forma criativa e inovadora. No entanto, o aspecto preocupante é o seguinte: num recorte dos últimos três ou quatro anos, o licenciamento de novas fontes de energia que tem predominado é extremamente sujo. É muito mais fácil licenciar pequenas termelétricas a carvão, a óleo ou a gás do que grandes hidrelétricas. Estamos sujando a matriz energética. Segundo ponto: o Brasil marcou um gol (além do biodiesel, do etanol e das hidrelétricas) com o Proinfa, que é um programa do governo federal de incentivo às fontes alternativas de energia. Precisamos substituir o chuveiro elétrico. Não existe outro país do mundo com tanta gente tomando banho quente com chuveiro elétrico como no Brasil. Isso é um absurdo num país solar, onde 280 dias por ano são de sol. Não devemos ficar tão agoniados para construir grandes hidrelétricas e usinas nucleares se soubermos usar o que temos.
IHU On-Line - Como entender, a partir do que o senhor acaba de dizer, tanta euforia em torno do pré-sal? Por que ainda vivemos em uma cultura tão presa ao modelo de consumo, à lógica da sociedade industrial? Como o senhor explica essa aparente contradição?
André Trigueiro - A palavra “contradição” expressa bem esse rico momento da nossa história. Esse paradoxo está colocado com muita força. O velho e o novo se digladiam. Existe uma dificuldade de assumir novas posturas e perceber que o século XXI está trazendo demandas importantes, graves, que exigem de gestores públicos, privados e do cidadão a devida atenção, porque são escolhas que precisamos fazer rápido. Estamos promovendo uma escalada de depredação dos recursos naturais que tem custado caro, estamos fazendo do Planeta um lugar hostil. Nosso modelo de desenvolvimento foi descrito há 16 anos na Rio 92, nos seguintes termos: “O modelo de desenvolvimento é ecologicamente predatório, socialmente perverso e politicamente injusto”. É esse modelo que precisamos denunciar e para o qual precisamos sinalizar alternativas. Diversas coisas não são sustentáveis: a sociedade de consumo; o consumismo enquanto valor existencial; todo mundo ter um carro na garagem; manter o desperdício não apenas de energia ou de água, mas de alimentos. Nosso estilo de vida é perdulário, não temos noção do limite. Não respeitamos porque não conhecemos a capacidade de suporte do Planeta. Continuamos achando que ele tem tudo o que precisamos para sempre. O grande desafio é promovermos uma mudança de cultura. No entanto, não se muda isso por decreto. Há que se ter um tempo de decantação, com escolas, universidades, ONGs, igrejas, movimentos sociais, uma nova geração de gestores públicos, de empresários. Há um tempo em que haverá um descolamento gradual e progressivo de uma visão ultrapassada do que deva ser a ciência econômica, da necessidade dos países crescerem com metas de crescimento de PIB. Precisamos de desenvolvimento e isso se mede também pela qualidade de vida das pessoas, o que não se alcança onde há depredação dos recursos naturais na escala em que vemos. Mudar não é um capricho: é a condição para continuarmos existindo.
IHU On-Line - Então, é correto falar em desaceleração da economia e que o decrescimento será indispensável para a nossa sobrevivência?
André Trigueiro - Se existe um lado positivo desta crise, é que ela talvez possa ensinar alguns de nós que é possível viver bem com menos; eu diria até que é necessário menos para viver melhor e que talvez possamos descobrir outros motivos dignos, interessantes e atraentes para viver do que apenas respirar lucro. As crises ensinam muito, principalmente a prestar atenção aos sinais.
IHU On-Line - Então, com as crises, é possível pensar em outra economia, outro estilo de vida, uma outra civilização? E que modelo de energia o senhor sugere para essa outra sociedade ideal?
André Trigueiro - É evidente que o modelo de energia ideal seja aquele que determina a emissão zero de carbono, mas não se alcança isso rápido. Há um período de transição, precisamos considerar, que pode levar 10, 20, 30 anos. Ainda precisamos e dependemos muito de petróleo, carvão e gás. Mas o modelo ideal é o da energia limpa e renovável, com muita pesquisa na direção da inovação tecnológica, buscando no hidrogênio, na energia geotérmica, na energia das ondas do mar, do sol, do vento, da biomassa, como podemos diversificar ao máximo a matriz e consumir de forma inteligente. Não adianta sofisticar ou limpar a matriz energética se as pessoas não mudam os hábitos de consumo. Quando falamos de inclusão social, falamos de inserir as pessoas num mundo onde há dignidade na sociedade, num estilo de vida onde se possa dispor de uma casa, de educação, saúde, lazer, transporte adequado. Se quisermos promover inclusão social, teremos uma demanda muito grande de matéria prima energética. É importante lembrar que, hoje, 20% da humanidade consome 80% dos recursos. Essa conta não fecha se a elite do mundo não repensar hábitos de consumo. Mesmo ganhando bem, não precisamos gastar tudo nas compras. E não se promove essa guinada sem educação.
(IHU On-Line)
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