sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

A ética da concorrência: quem é o verdadeiro herói?

“Uma ética da concorrência.” Para o professor Alexandre Ortuso esse é o tipo de ética que surgiu com o perfil atual dos executivos das grandes empresas. “Em um mundo onde o emprego define quem somos e qual é o nosso lugar na sociedade, isto é, define qual é nossa identidade social, fica, portanto, estabelecida individualmente uma ética da concorrência ou do desempenho no contexto do mercado de trabalho”, definiu Ortuso durante a entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Nesta conversa, ele fala sobre o perfil do executivo e o que muda com a crise financeira mundial.

Alexandre Ortuso é doutor em Economia aplicada pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Nos seus estudos sobre o perfil dos executivos das grandes corporações, o senhor afirma que os mesmos se transformaram numa espécie de heróis no mercado de trabalho e servem como referência para muitos. Afirma também que esses heróis manifestam determinada ética. Que ética é essa?

Alexandre Ortuso - Uma ética da concorrência ou do desempenho. O surgimento do capitalismo nas sociedades ocidentais se confunde com o aparecimento da modernidade. Entretanto, os ideais modernos de liberdade e igualdade são promessas que não podem se realizar no capitalismo. É justamente por isso que Marx [1] diz que o capitalismo criou mais mitos do que todas as sociedades anteriores somadas. O capitalismo é, na verdade, uma sociedade despótica e autoritária porque a concorrência é um imperativo que estrutura e ordena a sociedade. Não se pode escolher não concorrer.

Independente de sua posição social, vale dizer, de sua classe social, todos estão submetidos à concorrência. Nesse sentido, o dono de uma indústria ou de um comércio estão todo o tempo concorrendo com outros industriais e comerciantes para ocupar novos mercados, para baixar o preço e aumentar a qualidade de seus produtos. O sujeito que administra um fundo de ações precisa sempre obter uma valorização maior que seus concorrentes para continuar atraindo novos clientes.

O mesmo acontece com o indivíduo isolado no contexto do mercado de trabalho. É preciso concorrer com muitos para a obtenção de um posto de trabalho. Nesse sentido, a concorrência seleciona os melhores e mais aptos. Por isso mesmo, fica cada vez mais claro que a sociedade capitalista divide seus membros em dois grupos distintos: os vencedores e os perdedores. Os estadunidenses usam com freqüência tal divisão no cotidiano de suas vidas. Uma das maiores ofensas possíveis é chamar alguém de loser (perdedor). No Brasil, por motivos variados, que vão desde a constituição do povo até ao modo pela qual a religião aqui se estabeleceu, não usamos tais termos com a mesma freqüência dos estadunidenses. Mas é cada vez mais comum.

Se concorrer é um imperativo, a vitória na concorrência é a exigência lógica seguinte. Em um mundo onde o emprego define quem somos e qual é o nosso lugar na sociedade, isto é, define qual é nossa identidade social, fica, portanto, estabelecida individualmente uma ética da concorrência ou do desempenho no contexto do mercado de trabalho. E, nesse contexto, o executivo de uma grande corporação é realmente um grande vencedor.

IHU On-Line - O correto não seria chamar os executivos de anti-heróis na medida em que se submetem e ativam um processo de competitividade desumana?

Alexandre Ortuso - Na verdade, a idéia de heroísmo é uma ironia. São heróis entre aspas. De qualquer maneira, as carreiras executivas definem modelos de referência para a grande maioria de jovens recém-formados nas faculdades. Isso porque são carreiras que prometem remunerações altíssimas, viagens internacionais, bons hotéis, restaurantes caros, reuniões importantes, contatos com chefes de Estados e grandes empresários.

Os grandes executivos são, inclusive, reconhecidos como celebridades. Não é por outra razão que há reality shows sobre o assunto. É o caso de Donald Trump [2] nos EUA e o programa The apprentice. No Brasil, a versão brasileira copiada integralmente e apresentada pelo executivo-celebridade Roberto Justus [3] faz cada vez mais sucesso. Milhões de pessoas assistem semanalmente a seu programa e aspiram ser um dos “aprendizes”. Inúmeras também são as revistas sobre o assunto. Muitas delas têm como título palavras que remetem para a idéia de vitória e sucesso. Em última instância, diria que os executivos são heróis porque a competição no mercado de trabalho está cada vez mais acirrada. Sendo assim, aqueles que conseguem “chegar lá” são reconhecidos pelos demais como grandes vencedores. Quanto mais difícil o acesso e a competição maior a sensação de vitória.

De qualquer maneira, não podemos esquecer que como a concorrência é um imperativo, o executivo nada mais é do que uma criatura social, um sujeito que está condicionado por determinações externas à sua vontade. Ele é, nesse sentido, uma personificação do capital. É um funcionário do dinheiro comandado por uma lógica que ele não pode controlar. Mas, dentro dessa lógica que define uma ética da concorrência, ele é, de fato, um vencedor.

É preciso ainda dizer que a personalidade que melhor se ajusta a esse contexto é a personalidade narcisista. Não por outra razão, muitos dos executivos estudados apresentam as principais características que definem a patologia narcísica. Falo aqui das oscilações de humor, da manipulação das relações interpessoais, da inveja, da agressividade, etc. Por isso mesmo, afirmo que esse é um herói doente.

Finalmente, é preciso dizer que a figura desse herói está hoje ameaçada por conta da recente crise financeira. Isso porque, o grosso das remunerações dos executivos está atrelada ao desempenho do mercado financeiro. Vale dizer, aos bônus pagos semestrais e anuais pagos através das chamadas “stock options” das empresas em que trabalham.

IHU On-Line - Quais são as credenciais exigidas de um executivo pelo mercado de trabalho?

Alexandre Ortuso - O profissional que trabalha hoje como executivo de uma grande corporação é, sem dúvida, uma pessoa superqualificada. Dois conjuntos de qualidades pessoais são necessários. De um lado, qualidades cognitivas: inteligência sofisticada expressa especialmente na capacidade de pensar e resolver problemas concretos e na autonomia intelectual. De outro lado, qualidades comportamentais: iniciativa, liderança e habilidade para trabalhar em equipe. Tudo isso dentro de um contexto de constantes mudanças. Esse superprofissional precisa também cultivar a criatividade e flexibilidade para reagir com rapidez frente a mudanças repentinas.
Claro que tais qualidades devem, sempre, vir acompanhadas de uma faculdade de excelência e cursos de pós-graduação, MBAs etc. Mas só isso pode não ser suficiente. A experiência e a cultura adquirida desde a mais remota infância também são muitos importantes. Vale aquilo que muitos chamaram de capital social ou capital cultural, isto é, a educação e as experiências adquiridas na escola, no ambiente familiar, no convívio com os amigos, em viagens, nos filmes e peças de teatros que você assistiu, nas línguas apreendidas etc. Tudo isso ajuda a configurar o talento necessário a um executivo de sucesso.

Por último, é também preciso dizer que não há um limite pré-estabelecido para a construção desse talento. Por isso mesmo, o executivo de sucesso está sempre fazendo novos cursos e adquirindo novos conhecimentos.

IHU On-Line - O senhor afirma que não basta ao executivo alta capacidade e formação, é preciso também roupas de estilistas renomados e beleza física. A estética é um ativo cada vez mais valorizado pelo mercado de trabalho?

Alexandre Ortuso - Sem dúvida. Esse fato define outro ângulo de análise para entender o que significa dizer que os executivos são criaturas sociais ou personificações do capital. O mercado de trabalho, assim como qualquer outro, é definido pela existência de compradores e vendedores. De um lado, as corporações compram o talento de certas pessoas para usá-lo na sua administração. De outro lado, o executivo precisa criar um talento que seja atrativo para empresa, que seja vendável. Isso, em última instância, quer dizer que você precisa pensar e tratar-se como uma mercadoria no mercado de trabalho. E, aí, valem todos os atrativos para tornar essa mercadoria, esse talento vendável.

É preciso criar uma imagem de sucesso reconhecida rapidamente pelos demais. Mesmo porque essa imagem também se confunde com a imagem da corporação onde você trabalha. Ambos querem transmitir, num primeiro momento, uma imagem de sucesso. Isso fica muito claro quando você abre qualquer um livro de marketing pessoal ou mesmo a revista famosa no meio executivo chamada, muito adequadamente, de Você S.A. [4]. O título dessa revista resume com precisão a necessidade de tratar a si mesmo como uma mercadoria, como uma empresa única que está competindo com muitas outras empresas individuais por um lugar de destaque numa grande corporação. Tudo é muito cruel. Roupas caras, relógios, canetas, bolsas, carros, rostos jovens e bonitos, corpo atlético etc.. Tudo isso faz diferença quando você está se vendendo e competindo com muitos outros também à venda.

IHU On-Line - O executivo é uma manifestação da sociedade pós-fordista. Como o senhor definiria essa sociedade?

Alexandre Ortuso - Não, o executivo não é uma manifestação da sociedade chamada pós-fordista. A figura do sujeito que trabalha profissionalmente na administração da empresa sempre existiu. Henry Ford [5] sempre esteve cercado de pessoas que eram pagas para administrar e tomar decisões pela empresa. O que mudou foi a relação que esse sujeito estabelece com a corporação que o emprega. Se antes era uma relação de longo prazo onde o a história de vida do sujeito se confundia com a história da empresa, agora é uma relação efêmera e instável.

É uma relação puramente utilitária para ambas as partes. A empresa usa o executivo que por sua vez também usa a empresa para colocar seu talento em ação. A relação dura enquanto ambas as partes estiverem satisfeitas com suas respectivas rentabilidades. Não há, em princípio, nenhum compromisso além do financeiro.

A pergunta a ser feita é: por que é assim? A resposta, evidentemente, precisa levar em consideração o que disse anteriormente sobre a redução de tudo à mercadoria no capitalismo. Incluindo aqui o talento pessoal do executivo e a necessidade de ele usar a corporação com um lugar de valorização do seu talento ou de sua mercadoria.
Mas a resposta também precisa levar em consideração aquilo que eu acho que realmente define a sociedade chamada pós-fordista. Do ponto de vista produtivo, não há grandes diferenças em relação ao fordismo. O processo de produção, embora passível de maiores especializações e flexibilidade, continua sendo em massa. E a tecnologia continua sendo a principal arma para aumentar a produtividade. A diferença fundamental está nas conseqüências dessa maior produtividade para o trabalho.

O avanço tecnológico sintetizado no uso do computador reorganiza o mundo do trabalho de uma forma aparentemente contraditória. Ao mesmo tempo em que o computador rebaixa e desqualifica o trabalho de um grande número de pessoas, tornando o trabalho precário e mal remunerado, ele exige de alguns poucos um trabalho muito mais complexo e intelectualizado. Estou dizendo, há um claro processo de polarização do mercado de trabalho entre dois extremos bem definidos. No limite superior, empregos com melhores remunerações que exigem um nível cada vez mais alto de qualificação e capacidade intelectual. De outro lado, uma grande quantidade de empregos precários e mal remunerados que se concentram no setor de serviços.

Essa polarização significa um acirramento sem precedentes da competição por um posto de trabalho no limite superior. É preciso fugir do limite inferior. Isso se traduz, no caso do executivo, por uma necessidade cada vez mais acentuada de construir, vender e valorizar seu talento rapidamente. Antes que outro talento apareça para roubar seu lugar.

IHU On-Line - O senhor critica Antonio Negri [6] e Michael Hardt [7], utilizando-se de categorias marxistas. Não se trata de uma crítica conservadora, considerando-se que os mesmos não negam a luta de classes, mas procuram renovar o instrumental marxista para matizar que classe é essa hoje? O conceito de multidão não seria uma releitura do conceito de classes ajustado às transformações do mundo do trabalho?

Alexandre Ortuso - É verdade que o conceito de multidão é uma releitura do conceito de classe marxista frente à necessidade de repensar o mundo do trabalho, atualmente, frente ao aparecimento de um trabalho mais imaterial onde mais difícil dizer o que é exatamente a força de trabalho. Negri e Hardt colocam corretamente o dedo no problema. Entretanto, as conclusões que seguem a partir desse correto diagnóstico são desastrosas. A divisão de classes entre operários e capitalistas, muita clara no século XIX e no início do século XX, não existe mais. Isso está longe de significar o fim das classes sociais ou uma maior democracia como eles dizem. Você não pode, simplesmente porque não consegue enxergar com clareza a exploração de uns sobre outros que ela acabou. Não pode simplesmente dizer que somos todos agora uma Multidão e a maior democracia está o horizonte. Não é verdade que as classes acabaram. Muito pelo contrário. Elas continuam fazendo toda a diferença para as chances de cada um no mercado de trabalho.

O que são monopólios sociais? Eles definem pontos de partida diferenciados na concorrência por um lugar de maior destaque no mercado de trabalho. É evidente que aqueles que freqüentaram escolas melhores, viajaram, foram ao cinema, ao teatro, tiveram acesso a livros etc., porque têm riqueza material suficiente para pagar por isso, terão mais chances no mercado de trabalho. O posto de diretor de um banco está muito mais perto do filho de um médico bem sucedido do que do filho de uma faxineira terceirizada. Essa é uma discussão completamente ignorada pelos teóricos da Multidão.

Notas:

[1] Karl Heinrich Marx foi fundador de uma das grandes teorias que iria influenciar os séculos dezenove e vinte, intelectual alemão, economista, sendo considerado um dos fundadores da Sociologia e militante da Primeira e Segunda Internacional. A edição 278 da Revista IHU On-Line analisa a crise financeira mundial a partir do pensamento de Marx.

[2] Donald John Trump é um empresário norte-americano, também conhecido por apresentar o programa The Apprentice.

[3] Roberto Luiz Justus é um publicitário e empresário brasileiro. É o diretor executivo do Grupo Newcomm e presidente da Y&R, esteve entre os principais empresários da comunicação do Brasil.

[4] Você S/A é uma revista brasileira mensal, publicada pela Editora Abril e voltada para o mercado empresarial.

[5] Henry Ford foi um empreendedor estadunidense, fundador da Ford Motor Company e o primeiro empresário a aplicar a montagem em série de forma a produzir em massa automóveis em menos tempo e a um menor custo.

[6] Antonio Negri é um filósofo político marxista italiano. Negri adquiriu notoriedade internacional nos primeiros anos do século XXI, graças ao livro Império, escrito em co-autoria com seu ex-aluno Michael Hardt. O livro tornou-se um dos manifestos do movimento anti-globalização.

[7] Michael Hardt é um teórico literário e filósofo político estadunidense que leciona na Duke University. Além de Império, escreveu, em 2004, junto com Negri, o livro Multidão. O termo foi tratado no primeiro livro e agora é detalhado como um sítio potencial para um movimento democrático global.

(IHU On-Line)

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